Vida Normal
Auto-ajuda
Registrado sob n° 368.761 no
Escritório de Direitos Autorais da Biblioteca Nacional
Junho/2006
Autor: William Soares Muniz - wsmuniz30@gmail.com
À Natureza (qualquer que seja o nome a ela atribuído), com reverência, pela vida.
Ao meu casal de filhos, pela presença – aqui e sempre.
À minha família, pelo ônus da experiência aqui tratada.
Vida Normal !!!
Dizem os médicos, denotando sucesso.
E em muitas ocasiões, nem sucesso nem vida normal.
Por que?
Atenção: conteúdo sensível com a imagem de cirurgia.
Aos leitores
O conteúdo deste livro reflete as minhas percepções como paciente em um caso médico singular. Iniciado em 1970, transformou um problema menor em caso de extrema complexidade, implicando inclusive vinte e uma cirurgias, dezesseis das quais a partir de 31 de março de 2001.
É como se naquela data, após fomentadas todas as condições de propagação, fosse deflagrado um enorme incêndio, somente debelado em outubro de 2002. Tiveram então início os trabalhos de rescaldo, já bem encaminhados em fevereiro de 2006, mas ainda por concluir.
Questionado em diversas ocasiões sobre esse histórico, lembro que em uma delas a síntese me pareceu exercida com propriedade. Informada a respeito, uma amiga perguntou:
– O que tudo isso fez com você?
– Me desafiou ao extremo – respondi me auscultando, e complementei: – Tive sorte. A Natureza proveu um limite de resistência além do imaginado, e sobrou um tanto de forças para o desafio de dar utilidade à experiência vivenciada.
Sábios os gregos da antiguidade quando falavam da luta dos homens contra as circunstâncias, por eles associadas a deuses que carregavam em si traços próprios à natureza dos mortais. Enriquecidos ficariam aqueles que sobrevivessem às tragédias que afinal eram frutos da sua própria natureza.
Em resposta ao desafio de dar utilidade à experiência vivenciada no meu caso médico, com o propósito de incentivar a reflexão e o debate das causas dos problemas ocorridos, e das mudanças que se fazem necessárias, trato aqui das dificuldades incorporadas pelos homens na prática médica, e que neles próprios repercutem.
Incorporadas diretamente pelos médicos, quando envoltos por doses extremadas de alguns dos traços que são próprios da natureza humana, pelas distorções provocadas pelos seus próprios processos cognitivos, ou ainda, em casos de inaptidão ou deficiência na habilitação. Incorporadas indiretamente por interesses de agentes relacionados à prática médica, e por influência de algumas atitudes que são frutos do nosso processo histórico – aí consideradas inclusive as induções às más práticas que emanam das nossas carências institucionais.
Repercutindo nos pacientes, que acabam exigidos adicionalmente quando de danos acrescidos pela má prática médica, justo quando necessitando de todas as suas forças para o enfrentamento do mal maior que é a doença.
Fortuitamente, no entanto, a boa prática da medicina também se fez presente. Sem a participação dos médicos por ela responsáveis, este livro não teria sido possível. Primeiro, pela provável falta do autor. Mais ainda, pelas preciosas colaborações que deram a este atento paciente com vocação para o entendimento, mas sem nenhuma formação médica, no sentido de lhe permitir dar significados mais próprios às suas percepções. Como agradecimento a esses médicos cabe destacar, permitam-me os demais, a atuação do profissional a quem trataremos por Dr. Referência, pelos motivos expostos mais ao final desta introdução.
A produção deste texto, um desejo definido há tempos, teve de esperar pelo momento certo, quando estabelecidas as condições que evitassem eventuais distorções provocadas pelo desgaste emocional em que me vi envolvido. Uma cautela justificável, se considerado que ao esforço para superar o problema em si foram acrescidas as frustrações pela constatação de perdas da qualidade de vida e de recursos financeiros, evitáveis não fossem os equívocos médicos cometidos. Essa espera foi então longamente cultivada pela consciência do risco de comprometimento da proposta do livro.
Somente em dezembro de 2003, percebidos os indícios das condições próprias e após testá-las com resultados favoráveis, comecei a escrever o livro em paralelo ao tratamento clínico/cirúrgico, tendo o cuidado de interromper o trabalho sempre que me vi em condições muito desfavoráveis.
Foi evitada a simplificação de restringir o foco do livro à denúncia dos médicos envolvidos no caso, uma linha que acabaria por comprometer sua proposta. Também porque implicaria o desperdício da intensa experiência que vivenciei, quando por um longo período estive distanciado da dinâmica da vida comum que acaba nos envolvendo. Em ocasiões como essa a reflexão se estabelece plena, permitindo uma perspectiva mais própria por mais ampla, o que me possibilitou a imagem de que estivera participando de uma festa que se desenrolava a contragosto. Estivera afinal dançando conforme as músicas que não eram as minhas. Agora, quando ensaio o retorno à normalidade, a pretensão de recomeçar contribuindo para a transformação desses elementos da festa, na qual afinal desejo continuar inserido.
E no sentido daquela pretensão, ocorre-me o desafio de fundamentar o debate das seguintes questões:
E por último, e me parecendo a mais importante, uma questão de fundo:
Estariam os problemas da prática médica estimulados pelo cenário Brasil, particularmente a fragilidade institucional da nossa sociedade e alguns dos traços psicossociais prevalentes? O que nos cabe a respeito?
O envolvimento do leitor, não só com os detalhes do caso em questão como também com as relações de causa e efeito dos problemas tratados, se estabeleceu então como condicionante para a consecução do propósito do livro, determinando a sua estrutura e forma expositiva.
O caso é relatado cronologicamente, por segmentos associados aos diversos tratamentos clínicos e cirúrgicos. Inicialmente é feito um relato factual do ocorrido, fundamentado na farta documentação e em todo o material coletado ao longo do tempo no sentido de assegurar a veracidade no tratamento do assunto. Em seguida, são colocadas as percepções e as recomendações deste autor-paciente, sem qualquer pretensão de esgotar o assunto ou estabelecer versões definitivas e irretocáveis, mas com o objetivo declarado de incentivar as críticas e os debates que agreguem contribuições para a consecução do propósito do livro.
Ao longo do relato há algumas situações ocorridas, e também alguns poucos escritos que produzi utilizando a linguagem dos poetas – mas sem o domínio da sua arte, pelo que me desculpo – com o objetivo de tentar envolver o leitor nas emoções que se apossaram de mim na ocasião.
Os nomes dos médicos e dos agentes envolvidos são omitidos no sentido de manter o foco da narrativa alinhado com o propósito do livro, uma vez que as citações nominais poderiam provocar dispersão pela interpretação de que estariam voltadas para acusações e cobranças pessoais, que me parecem mais próprias em ações judiciais. Por esse motivo, os médicos são referenciados por palavras-chave que tentam ilustrar a questão maior explicitada na sua participação nesse longo caso que trataremos. Procurei, ao longo do tempo, colocar pessoalmente a cada um dos médicos envolvidos o que aqui é relatado e lhe diz respeito, ocasião em que solicitei a alguns que os problemas não fossem repetidos e agradeci a outros pela valiosa contribuição, devidamente enaltecida.
Dediquei-me plenamente a atender aos compromissos e expectativas a que me referenciei nesta introdução.
Espero ter conseguido.
Primeiros indícios
Celebridade, Práticas e Resultados
As mudanças nas práticas profissionais usualmente ocorrem de forma gradual, determinadas em maior escala pela evolução dos recursos tecnológicos e por transformações de ordem econômica, mas também pelas transformações operadas na sociedade, cujos valores e modelos predominantes acabam por repercutir naquelas práticas.
Percebemos mais facilmente as mudanças por conta da tecnologia, pelo impacto das suas novidades, e em oposição, tendemos perceber com maior dificuldade as mudanças pelas transformações operadas na sociedade, cujos resultados assimilamos ao longo do tempo – sem maiores impactos –, atores que somos dessas transformações. Exemplificando, de uma forma geral temos aquiescido e até mesmo incentivado a exacerbação do consumo e da exposição pessoal, atendendo aos nossos traços de ambição e vaidade. Desta forma tendemos a perder as referências que nos permitiriam perceber as repercussões que se estabelecem, inclusive quanto às práticas profissionais.
Lembro, no entanto, um caso médico ocorrido há bastante tempo que explicitou as profundas diferenças nos resultados de práticas distintas da medicina. Em 1976 Fabio, meu filho, era um garoto com dois anos de idade e uma vida saudável cujo único senão eram uns eventuais ataques de bronquite asmática de fundo alérgico, com repercussões de pequena dimensão. Não havia maiores preocupações a respeito, inclusive pela assistência que lhe era dada pelo Dr. Indícios, um célebre pediatra que investia permanentemente em demonstrações de simpatia, autoconfiança e pleno domínio da sua especialidade.
Seu excelente consultório em Ipanema era muito bem frequentado, estava permanentemente cheio de pacientes e as suas consultas eram regiamente cobradas, fatores que contribuíam ainda mais para lhe conferir a melhor das avaliações, segundo os comentários ouvidos na sala de espera. O atendimento nas consultas era bastante rápido, o que em primeira instância me pareceu não comprometer em nada aquelas avaliações positivas, até porque havia um certo consenso de que a rapidez decorria da competência.
E aí então veio a ocorrer um pequeno incidente em uma festa de aniversário, enquanto as crianças aproveitam para extravasar a sobra de energia que lhes é peculiar, ocasião em que Fabio veio a cair de costas com a boca cheia de amendoins parcialmente mastigados. Seu choro foi compartilhado com um violento acesso de tosse que durou alguns minutos, mas passou ainda em tempo de lhe permitir voltar às brincadeiras. Nos dias subsequentes, os acessos de tosse voltaram a acontecer com uma frequência razoável, se estabelecendo um quadro com todos os sintomas de uma bronquite asmática, e como tal o problema passou a ser tratado pelo Dr. Indícios. Mas desta vez nada de resultados.
O quadro desfavorável evoluía rapidamente, comprometendo a respiração a ponto de se fazer necessário levar o Fabio quase todas as madrugadas a uma clínica para aplicação de inalações. As dificuldades de alimentação e as consequências da pesada medicação administrada debilitavam sensivelmente o seu organismo, o que era facilmente constatado pela substancial perda de peso e por uma falta de energia permanente. O Dr. Indícios era visitado frequentemente e nas suas rápidas consultas mantinha o diagnóstico e determinava a continuidade do tratamento, não obstante as repetidas observações que lhe eram feitas quanto à possibilidade de que o problema estivesse relacionado ao incidente ocorrido na festa de aniversário, o que vinha sendo feito desde a primeira consulta a respeito.
Passados uns dois meses com evidente evolução do problema, pelo temor de que o pior viesse acontecer, um outro médico foi consultado a respeito. Entrou em cena o Dr. Ouvinte, um profissional que se apresentava com um comportamento mais despojado, prescindindo de qualquer tipo de demonstração, mas bastante atento. Na primeira consulta, que demorou um longo tempo, o Dr. Ouvinte perguntou muito, ouviu mais ainda – inclusive o relato do incidente na festa de aniversário –, e depois procedeu a um cuidadoso exame do Fabio.
Os pulmões foram auscultados sem o auxílio do estetoscópio, ficando os ouvidos daquele médico encostados no peito do Fabio por longo tempo, enquanto este alternava os diversos tipos de respiração que lhe eram solicitados. Ao final do exame, foi feita a recomendação: “O garoto deve ser levado a uma clínica radiológica e só sair de lá quando for determinado com precisão onde está o corpo estranho que se alojou no seu pulmão. Em princípio eu sei onde está, mas é necessário confirmar”.
O laudo do exame veio a confirmar o diagnóstico, e logo em seguida, como impunha a urgência do caso, um médico recomendado pelo Dr. Ouvinte retirou a metade de um amendoim que se alojara no lóbulo superior do pulmão direito, em procedimento operado por endoscopia com aplicação de anestesia geral.
No tal incidente na festa de aniversário, a queda de costas, o grito e o choro haviam criado condições tais que o pedaço de amendoim acabou tomando o caminho errado. Ocorrera então uma perda de controle da laringe, o conduto que se situa imediatamente abaixo da raiz da língua e tem, entre outras, a função de uma válvula que evita a passagem do alimento para a traqueia, através da qual o ar respirado chega aos pulmões. Daquele episódio, duas cenas inesquecíveis. Na primeira, o Fabio entrando na sala de cirurgia ocupando uma mínima parte da maca que o transportava. Na outra, o Dr. Ouvinte saindo da mesma sala, me mostrando o pedaço do amendoim retirado e comentando que déramos muita sorte. O amendoim começara a se decompor e com um pouco mais de tempo não mais seria possível o sucesso obtido naquela intervenção.
À época, a minha percepção quanto ao ocorrido se restringiu ao explicitado pelas distintas práticas e resultados dos médicos envolvidos, indicando algo de errado com os fatores de avaliação que conferiam ao Dr. Indícios tão maior celebridade. Afinal, a sua prática poderia ter causado consequências gravíssimas, até mesmo fatais, caso o tratamento não fosse interrompido a tempo. Fiquei ainda com a opinião de que o equívoco cometido pelo Dr. Indícios teria como causa única aquelas consultas rápidas, não obstante muito bem remuneradas, que não lhe permitiam exercer a lógica investigativa inerente à prática da medicina.
Hoje, me ocorre que mais havia como causa do risco a que Fabio foi submetido. Para chegar a esse mais, devemos recorrer a Robert J. Sternberg, um professor vinculado à Universidade de Yale, que em seu livro Psicologia Cognitiva trata do assunto para os estudiosos da área, mas de uma forma que o torna também acessível aos não iniciados.
Coloca Sternberg: “As pessoas pensam, e na psicologia cognitiva os cientistas pensam a respeito de como as pessoas pensam. A psicologia cognitiva é então o estudo do modo como as pessoas percebem, aprendem, recordam e pensam sobre a informação”. De todo este vasto espectro, ocorre-me trazer para o âmbito do tema que ora tratamos o que diz respeito à percepção, particularmente a construtiva.
Ainda Sternberg: “Na percepção construtiva o perceptor cria (constrói) uma compreensão cognitiva (percepção) de um estímulo, usando informação sensorial como fundamento para a estrutura, mas utilizando também outras fontes de informação para construir a percepção”. Continua aquele autor: “De acordo com a teoria da percepção construtiva, durante a percepção fazemos e testamos rapidamente várias hipóteses relativas aos perceptos, baseados no que sentimos (os dados sensoriais), no que sabemos (conhecimentos armazenados na memória) e no que podemos inferir (utilizando processos cognitivos de alto nível)”.
Voltemos ao que mais havia no caso Fabio considerando então que, perante os sintomas apresentados após o incidente com o amendoim, o Dr. Indícios incorreu em uma percepção de que se repetia um problema já ocorrido. Para tanto assumiu como referencial os conhecimentos anteriormente armazenados na sua memória, quando o Fabio apresentara os mesmos sintomas tendo como causa a bronquite asmática que eventualmente lhe acometia.
Aquela percepção equivocada era até conveniente em termos da rapidez das consultas a que o Dr. Indícios se propunha, mas era de extrema inconveniência para a boa prática da medicina, como vimos pelas suas consequências. E, no entanto, poderia facilmente ter sido modificada, caso o referencial determinado pelas situações anteriores fosse desconsiderado. Bastaria que o Dr. Indícios dedicasse um tempo e uma atenção maiores, o que lhe permitiria dar relevância à evidente evolução do problema mesmo com a pesada medicação aplicada, assim como também às repetidas advertências quanto ao incidente com o amendoim.
Não creio que a influência dos interesses comerciais na prática das consultas rápidas do Dr. Indícios, evidente e exacerbada, tenha induzido a um ato consciente de negligência. Ocorre-me mais um outro tipo de indução, na qual o desconhecimento a respeito da psicologia cognitiva lhe coibiu ainda mais, naquele seu atendimento rápido, dar a devida relevância às novas evidências que indicavam um quadro distinto.
Creio ainda mais, que deveria ser dada a maior relevância a essa disciplina nos cursos de formação da área médica. Por pouco não se consumara uma perda inadmissível, por um equívoco evitável.
Fonte
Nascidos do meu, corpos outros
Almas distintas, singulares
Vidas próprias, logo postas como referências da minha
Atento e agraciado, contemplo motivações
Resgate de elos com a vida antes saciados
Compreensão que estabelece a cumplicidade
Amor em estado permanente, assim exercido
Estímulos constantes de outros tantos do meu melhor
Inclusive da força que se traduz em fé
Aberturas contínuas neste ato solitário da vida
Percebo, desafiado, permanentes transformações.
Etapas naturais de evolução às quais me dedico responder
Fonte que sou dessas vidas, fontes permanentes da minha.
Como veremos adiante, as causas das más práticas médicas que ameaçaram o Fabio não se esgotaram no seu caso.
O caso médico
Seria uma mera questão do acaso? Do infortúnio?
As causas dos seus problemas teriam focos localizados ou mais abrangentes?
Fomentando o problema
Cauterização e Cirurgia Um – Procedimentos
Pela inconsciência do que ele viria a representar, não datei com precisão o evento inicial do longo caso que trataremos em seguida. Mas já ocorrera antes mesmo do caso Fabio, não sendo até então notado porque as suas conseqüências ainda não haviam se revelado. Tomando por referência outros eventos importantes ocorridos à época, situo aquele inicio em 1970, quando se apresentou um problema de pele na minha face direita, justo onde se encontrariam duas linhas perpendiculares – uma vertical, passando pelo canto da boca; outra horizontal, na altura da ponta do nariz. Tinha a aparência de uma pequena cicatriz superficial e não causava nenhum outro incômodo senão um sangramento quando do barbear.
Problema na pele, recorri ao catálogo do plano de saúde e escolhi um dermatologista pela conveniência do acesso ao consultório. Atendido em consulta pelo Dr. Desconhecimento, ele procedeu a uma cauterização da região afetada, após o que recomendou cuidados quando do barbear durante os próximos dias, a partir do que: Vida Normal!
E assim parecia, pois logo o tecido se recompôs e o sangramento não mais ocorreu. Nem mesmo cheguei a comemorar. Naquela época, aos vinte e três anos, sem nenhuma experiência anterior como referência, e com o distanciamento natural da juventude quanto às preocupações com a saúde futura, um episódio dessa natureza e desse porte não mesmo chamava a atenção. Exclusive pelo fato de ter me coibido a praia no fim de semana subseqüente à intervenção. É, isso era chato, porque afinal a praia e o vôlei nela praticado eram hábitos prazerosos, atendidos plenamente e sem nenhuma precaução, pois ainda não havia se estabelecido essa atual política de vida saudável, com todas as suas recomendações quanto aos riscos da exposição ao sol. Nada de protetor solar, a moda mesmo eram os bronzeadores, que eu dispensava. Rapidamente voltei então aos meus hábitos praianos sem nenhuma precaução, e assim foi durante um bom tempo.
Mais precisamente durante dezesseis anos, pois em dezembro de 1986 o ato de barbear voltou a provocar sangramento naquela mesma região, onde a lesão agora se apresentava com uma dimensão bem similar à que aparece na foto a seguir, de 1972. Uma irrelevante evolução aparente escondia uma extensa e perigosa extensão do problema, que ganhara dimensões internas, como veremos ao longo desse relato.
De volta ao catálogo do plano de saúde, agora com a evidência de que o problema ganhara uma dimensão maior, recorri a um cirurgião plástico, o Dr. Estética. Ele ouviu a respeito da cauterização realizada, desaprovou aquele procedimento e recomendou cirurgia. Ainda naquele último mês de 1986, em sala de cirurgia ambulatorial e com anestesia local, o tecido lesionado foi retirado e a região foi muito bem recomposta, com os cuidados próprios da especialidade.
Após a cirurgia o tecido retirado foi encaminhado para exame, cujo laudo acusou: “MACROSCOPIA – Segmento elíptico de pele medindo 2X1cm, apresentando lesão central ligeiramente elevada medindo 0,7cm, e aos cortes apresentando coloração pardacenta e limites nítidos MICROCOSPIA – O exame de cortes mostra: Epitelioma basocelular OBS: Lesão completamente excisada.”
Fui então informado pelo Dr. Estética que eu tinha um câncer de pele, um carcinoma basocelular, que assumira dimensões maiores. Porém, ressaltou, nada mais havia com o que se preocupar, uma vez que o laudo do exame realizado confirmava a completa excisão da lesão. Concluiu recomendando que eu evitasse exposição ao sol durante um mês, no sentido de resguardar a recomposição estética. Após o que: Vida Normal! E assim parecia, mais uma vez. Antes mesmo de completado o primeiro mês a região havia se recomposto de uma forma tal que sugeria o fim do problema. Mas desta vez comemorei. Recordo da sensação de alívio por me ver livre de um problema que afinal não tinha a simplicidade antes imaginada.
Cauterização e Cirurgia Um – Percepções e Constatações
Á época, a cauterização feita pelo Dr. Desconhecimento me pareceu imprópria tão somente pelo fato de não ter erradicado o problema. Porém, conforme constatado mais adiante, bem mais havia por conta daquela impropriedade, pois o procedimento do Dr. Desconhecimento havia propiciado uma danosa multiplicação do problema, que se lhe apresentara ainda de fácil solução, pelas suas condições iniciais.
Segundo os oncologistas, o carcinoma basocelular é um tumor de evolução lenta e que se caracteriza como local, não ocorrendo metástase – a propagação para outros órgãos. Esta somente ocorreria em casos raros, quando tumores não tratados durante longo tempo acabam atingindo os gânglios, que então atuam como agentes da metástase. Assim, o basocelular se expande localmente em um lento processo de comprometimento das células saudáveis que lhe são contíguas. A exceção é o do tipo esclerodermiforme, como o do meu caso, que além de proceder como os demais, lança algumas das suas células um pouco mais à frente, o que lhe dá uma maior capacidade de expansão.
Por essas características o basocelular é tido como benigno, permitindo a total erradicação do problema desde que observado o cuidado de sua completa excisão, considerando inclusive uma razoável margem de segurança, que deve ser maior ainda em se tratando do tipo esclerodermiforme. Esse cuidado impõe a necessidade de que o exame histopatológico do tecido retirado seja feito durante o ato cirúrgico, o que permite ao cirurgião determinar com precisão as fronteiras de propagação do tumor.
Voltando à intervenção do Dr. Desconhecimento, tínhamos naquela ocasião a melhor das condições para solucionar definitivamente o problema. O tumor estava no seu estágio inicial, superficial e com pequenas dimensões. “Você não mais precisaria estar tratando deste tumor. Bastaria que ele tivesse sido retirado no seu estágio inicial com uma pequena colher de café”, ironizou um dos médicos que posteriormente vieram a recriminar a cauterização, ilustrando a simplicidade da erradicação do problema com um procedimento de excisão. A cauterização, ao contrário, fomentou a multiplicação do problema por não eliminar aquelas células lesionadas que estavam mais afastadas da superfície da pele, incentivando a muito inconveniente expansão do tumor no sentido de profundidade. Mais ainda, na falta de um exame diagnosticando o basocelular, nada me foi recomendado quanto aos cuidados de proteção quando da exposição ao sol. A partir de então, o tumor se expandiria na sua superfície, pela exposição direta ao sol, e também em maior profundidade, pelas raízes que lá permaneceram.
Após a cirurgia realizada pelo Dr. Estética, constatada a impropriedade da cauterização, eu tinha uma dúvida e uma certeza.
O que teria motivado o equívoco cometido pelo Dr. Desconhecimento? Poderia ser tão somente a sua imperícia, uma questão pessoal. Mas também poderia ser um problema inerente à sua especialidade médica, a dermatologia, uma questão que remeteria ao processo de formação acadêmica e também à regulamentação da área de atuação da especialidade. Mais adiante eu viria a me defrontar com essa mesma dúvida, já com mais informações para fundamentar uma opinião a respeito.
Quanto a certeza, eu havia definitivamente incorporado que perante um problema de pele, faz-se mandatório o exame de tecido da região que permita um mais apurado diagnóstico das suas causas. Primeiro, porque é uma forma de se prevenir contra eventuais erros de avaliações visuais e por tato, a que nenhum médico pode se furtar. Mais ainda, porque os custos inerentes ao exame não são coibitivos, ao contrário dos onerosos tratamentos que decorrem de diagnósticos indevidos ou ocorridos fora de tempo hábil.
Mas também o retorno á vida normal após a cirurgia com o Dr. Estética tinha um prazo, como já ocorrera antes. Quatro anos depois, em fevereiro de 1990, o tumor estava de volta. Em verdade uma ocorrência desagradável, mas não totalmente imprevisível, pois eu passara a conversar a respeito do problema com pessoas amigas, principalmente médicos, e tinha tomado conhecimento que teria sido melhor recorrer a um oncologista. É que, por formação, os profissionais da cirurgia plástica reparadora tendem a privilegiar a estética, não sendo portanto os mais recomendados para a excisão do tumor. Afinal, durante este ato deve haver a preocupação de não inviabilizar a recomposição, mas não a ponto de comprometer a excisão necessária, mesmo que severa, para a erradicação do problema.
O fato de que o exame do tecido excisado tenha sido feito somente após a cirurgia já explicita que o foco principal do Dr. Estética não era bem a excisão do tumor. Um equívoco, principalmente em se tratando de um caso de recidiva após uma cauterização ocorrida dezesseis anos antes.
O caso é sério vamos ao “Papa” – Cirurgia 2
A Escolha
Em fevereiro de 1990, vinte anos após aquele procedimento inicial de cauterização, e quatro após a cirurgia em que o tumor fora excisado, estava eu de novo com as atenções voltadas para o mesmo problema. Desta feita não havia mais sangramento, mas a região afetada assumira dimensões maiores e um aspecto macerado. Era evidente o processo de degeneração provocado por aquele tumor anteriormente definido como benigno, mas que já havia sido cultivado o suficiente para suscitar dúvidas quanto a essa qualificação. Ante esse quadro me ocorreu a consciência da gravidade do problema, e também o questionamento quanto as minhas escolhas anteriores dos profissionais da medicina.
Recorri então ás indicações de um amigo médico, cirurgião com grande experiência e muito bom senso, que embora atuando em outra especialidade de cirurgia tinha um grande conhecimento a respeito dos profissionais da área. Esse amigo, após pesquisa que confirmou a sua intenção primeira, recomendou o cirurgião cuja atuação era considerada como modelo para a solução de problemas como o meu. Era um oncologista considerado como severo no trato de excisão dos tumores, justamente o que o meu caso necessitava. Comecei a resgatar a tranqüilidade não só pela certeza da boa vontade e do bom senso do meu amigo, como também pelas opiniões favoráveis dos que vieram a saber daquela opção, havendo inclusive um certo consenso de qualificar o profissional indicado como o “Papa” da área.
No primeiro contato com o Dr. Narciso identifiquei nele traços que eram comuns ao Dr. Indícios, aquele do caso do meu filho Fabio, mas também diferenças. Em comum, as permanentes demonstrações de autoconfiança e de grande domínio da sua área. A simpatia, no entanto, tendia a ser substituída por um polido e soberbo distanciamento, de tal ordem que nem mesmo dava para perceber as suas causas. Porém nada havia em comum quanto às consultas rápidas que caracterizavam o atendimento do Dr. Indícios. Após o exame do meu rosto e da documentação que entreguei, ouvi do Dr. Narciso um longo relato com veementes restrições às intervenções ocorridas anteriormente, que desqualificavam os profissionais por elas responsáveis. Mas que eu não me abatesse porque ele resolveria o problema com uma intervenção “séria”. Com a minha concordância quanto a remuneração, valorizada em dólar, a cirurgia foi acertada.
Uma Aula-Show – Cirurgia Dois
Procedimentos
Na data combinada, ainda em fevereiro de 1990, estava eu novamente em uma sala de cirurgia ambulatorial, mas desta vez com algumas novidades. Além do Dr. Narciso estava presente um patologista, para a realização dos exames que se faziam necessários durante a cirurgia. Contávamos ainda com a presença de dois observadores, aquele meu amigo que recomendara o Dr. Narciso e um outro médico que era um amigo em comum. Ao recebê-los o Dr. Narciso profetizou: “Ainda bem que vocês o trouxeram a mim, esta é a sua última chance!”. Mais uma vez sob anestesia local pude acompanhar o andamento da cirurgia, que demorou cerca de quarenta e cinco minutos. A excisão do tumor ocorreu no primeiro terço desse tempo, sendo o restante despendido na recomposição da região, e ao longo de toda a cirurgia o Dr. Narciso descreveu para os seus colegas os procedimentos que estava realizando, com muito maior eloquência e nível de detalhes os procedimentos de recomposição. É que se tratava da aplicação de uma técnica de enxerto por rotação de retalho, citada então como de domínio restrito no âmbito Brasil. Aplicando esta técnica com perícia, o Dr. Narciso fizera a recomposição utilizando um retalho nasogeniano. Em outras palavras, ele enxertara no espaço aberto pela excisão do tumor um pedaço de tecido – o tal retalho –, quase totalmente excisado da região mais abaixo do tumor, já perto da mandíbula direita. Quase, porque restara um filete que iria assegurar a irrigação sanguínea do retalho enquanto o processo de cicatrização estabelecia uma nova vascularização. Ao término da cirurgia me senti confiante. Ficara claro o entusiasmo demonstrado pelos meus amigos médicos presentes, que haviam enaltecido com entusiasmo o domínio do Dr. Narciso sobre as técnicas utilizadas, particularmente aquela de enxerto por rotação de retalho. Por fim, o Dr. Narciso vaticinou: “Pronto, resolvido!”. Na consulta de revisão que se seguiu os pontos foram retirados e ficou claro que a recomposição da região ficara muito bem feita. Coloquei então a minha dúvida se desta vez a excisão do tumor ocorrera de forma a assegurar o sucesso da cirurgia, ouvindo do Dr. Narciso um relato tranquilizador a respeito. Fora procedido como necessário, conforme atestava o laudo do exame realizado: “MACROSCOPIA – O material apresenta lesão cutânea de sulco nasogeniano direito e consiste de elipse de pele e tecido celular subcutâneo, medindo 2,4 X 1,6 cm, exibindo lesão esbranquiçada, algo sobre elevadas, difusas, medindo no maior eixo 1,0 cm, revestidas por epiderme, aos cortes a superfície é esbranquiçada e mede até 0,6 cm de espessura. O restante de epiderme é esbranquiçada e lisa. Cortes representativos do material são incluídos para exame histopatológico. MICROCOSPIA – Neste material observamos processo neoplástico de linhagem epitelial o qual é constituído pela proliferação de células basofílicas dispostas em grupamentos com arranjo em paliçada na periferia. Os limites cirúrgicos de ressecção foram examinados em congelação e mostram-se livres de comprometimento neoplástico. CONCLUSÃO: Carcinoma basocelular; Limites cirúrgicos de ressecção livres de comprometimento neoplástico.”
Estava eu de volta à vida normal, desta vez com recomendações severas de proteção quando da exposição ao sol.
Uma Recidiva Inédita
Mas o retorno á vida normal tinha novamente um prazo, e desta vez muito curto. Em setembro daquele mesmo 1990, apenas sete meses após a minha última vida normal, o tumor estava de volta. Era visível a olho nu e perfeitamente sentido pelo tato. Retornei ao consultório do Dr. Narciso, sentei em frente à sua mesa e ficamos a uma distância pouco inferior a dois metros. Em seguida, respondendo a sua pergunta, coloquei que o tumor estava de volta.
Olhando o meu rosto de onde estava sentado, mas com um distanciamento do problema infinitamente maior que os dois metros que nos separava, ele sentenciou: “Isto é normal acontecer. Vamos marcar uma nova cirurgia e desta vez eu vou lhe cobrar tantos dólares”. Ante os valores que estavam sendo explicitados pelo comportamento do Dr. Narciso, não dei qualquer relevância ao monetário. Nem mesmo cheguei a ouvir a quantidade de dólares correspondentes àqueles tantos que acabo de me referir. Afinal, quando ela foi dita a minha mente estava integralmente dedicada a entender o que se passava. O que me foi dado a perceber naquele momento foi dito em tom de protesto, mas precisei de mais algum tempo para elaborar melhor a minha percepção a respeito.
Uma Aula-Show – Cirurgia Dois
Percepções e Constatações
Ante esse novo retorno do problema fui tomado pela surpresa. Não me parecia ter havido qualquer omissão quanto aos cuidados tomados naquela mais recente tentativa de resolver o problema. A escolha do médico havia considerado todos os critérios próprios para o caso, o ato cirúrgico havia transcorrido em obediência aos procedimentos recomendados e utilizando as melhores técnicas, e finalmente, após a cirurgia passei a tomar rigorosos cuidados quanto à exposição ao sol. É verdade que estávamos diante de um problema que havia se agravado ao longo dos últimos vinte anos. Mas convenhamos, não a ponto de justificar uma recidiva em um curtíssimo prazo de apenas sete meses, inédito até então e que assim permaneceu.
Após esse terceiro insucesso na tentativa de resolver o problema, eu já me sentia mais experiente para o trato com os perceptos a que se refere à psicologia cognitiva. Já me sentia mais a vontade para o exercício de uma percepção mais aguçada da relação de causas e efeitos na prática médica. Resgatei da memória a conversa com o Dr. Narciso na consulta de revisão da cirurgia, quando ele foi bastante afirmativo em resposta a minha dúvida sobre a dimensão devida da excisão do tumor. No entanto, os sete meses decorridos para a nova recidiva, assim como o surpreendente porte que o tumor assumira nesse período, apontavam em sentido contrário. Se tivesse havido uma excisão severa, compatível com o histórico do caso e com o conceito atribuído àquele profissional, seria grande a probabilidade de não mais termos recidiva. Se ocorresse, não seria naquele exíguo prazo.
Mas não sem motivos eu havia colocado aquela dúvida na revisão da cirurgia, pois o pouco tempo dedicado à excisão tinha me chamado à atenção. E agora, ante aquela recidiva singular, percebi que havíamos todos caído em uma danosa cilada. Eu, os meus amigos médicos e também o próprio Dr. Narciso.
Para melhor entendimento a respeito, convém colocar um tanto mais sobre esse médico que se apresentava com um polido e soberbo distanciamento. O Dr. Narciso dedicava-se a cirurgias em pacientes particulares, entre os quais algumas celebridades. Mas dedicava-se ainda à direção de órgãos públicos ligados à área da saúde, inclusive pelas suas antigas relações com políticos de influência. O exercício do poder lhe era extremamente atraente e, por conseguinte, bastante cultivado, inclusive com a declarada ambição de galgar postos de maior alçada, motivo pelo qual utilizava a divulgação da sua competência médica como instrumento de habilitação no seu esforço político. Obviamente o foco primeiro dessa divulgação era a própria área médica, no sentido de se estabelecer como o seu representante para a administração da saúde no âmbito público.
É nesse cenário que se estabeleceram as condições para a cilada em que todos viemos a cair. Cedendo à sua ambição, o Dr. Narciso não poderia prescindir daquela oportunidade que se apresentara quando da minha cirurgia, pela presença de dois dos seus colegas de profissão que poderiam vir a ser incorporados ao seu eleitorado, desde que devidamente conquistados.
Mas os procedimentos de excisão do tumor não tinham muita atratividade para aquele fim. Não envolviam nenhuma técnica nova que despertasse interesse, e a constatação do seu sucesso não se daria durante o ato cirúrgico, mas sim ao longo dos anos posteriores, caso não mais ocorresse a recidiva. Já os procedimentos de reconstrução eram extremamente úteis como instrumento de conquista. Não só pela aplicação de uma técnica que ainda não era de pleno domínio no Brasil, como ainda pelo fato de que os seus resultados ficariam explicitados de imediato. Nada mais natural, portanto, que aos procedimentos de reconstrução tenham sido dedicados muito mais tempo, muito mais entusiasmo, muito maior eloquência nas explicações detalhadas. Muito mais atenção, enfim.
Tivéramos na verdade um show do agrado de todos: do Dr. Narciso, pela conquista que serviria à sua ambição; dos médicos observadores, pela competente e segura aula; do paciente, pela incorporação do entusiasmo dos demais; mas também do tumor, que afinal permanecera.
Essa percepção viria a ficar reforçada posteriormente, em um momento político de nomeações para importantes cargos públicos. Naquela ocasião, em uma sala de embarque de aeroporto, sentaram-se ao meu lado o Dr. Narciso e três pessoas que o acompanhavam a uma viagem a Brasília. Durante toda a espera os acompanhantes escutaram uma eloquente exposição típica de um candidato em campanha. Logo em seguida, aquela campanha viria a ser declarada em uma entrevista publicada na imprensa escrita. Nela, o médico reconhecia enfaticamente o seu narcisismo, e colocava-o como justificativa para a sua dedicação à vida pública.
Por essa entrevista ficou respondida a minha dúvida remanescente. Dizia respeito às causas do polido e soberbo distanciamento por ele demonstrado continuamente, que extrapolava as recomendações de cuidados com os limites do envolvimento emocional do médico com os seus pacientes, estendendo-se ao próprio problema do paciente. O Narcisista se basta, qualquer proximidade compromete a plena admiração da imagem refletida, o que induz ao distanciamento. Principalmente quando o que se apresenta reflete o feio, como naquela visita que fiz ao Dr. Narciso para lhe comunicar da recidiva apenas sete meses após a cirurgia. Mas eu precisava dele como resolvedor do problema, para o que não basta ser competente mas sim exercer a competência. E para tanto é mandatório o envolvimento com o problema no sentido de reconhecê-lo, sem o que não se faz possível tratá-lo com propriedade.
A falta desse envolvimento havia sido a questão decisiva para a minha desistência da continuidade do tratamento com aquele médico. Não sem antes refletir quanto à possibilidade de coibir que aqueles traços de comportamento do Dr. Narciso continuassem a prevalecer. Conclui, no entanto, que o problema a ser tratado era o meu e não o dele.
Temi pelo sucesso daquele esforço que haveria de começar já naquele momento em que comuniquei a recidiva e tive como resposta o quanto de dólares. Teria então que assumir o encaminhamento, propondo que primeiro refletíssemos a respeito das causas da recidiva em tão pouco tempo, o que negava tudo o que havia sido dito anteriormente, e ainda, proceder a exames minuciosos que configurassem o problema de forma precisa para minimizar a possibilidade de um novo insucesso. Mas e depois, o que mais viria? Não, lamentavelmente a melhor opção era a desistência do tratamento com aquele médico que, voltado para o espelho, se negava a disponibilizar a sua competência para o meu caso.
Eu havia me defrontado com as dificuldades dos homens na prática da medicina quando traídos pelas suas próprias ambições e vaidades. E isto se repetiria, como veremos adiante.
Em busca do envolvimento – Cirurgias 3 e 4
A Escolha
O insucesso com o Dr. Narciso havia estabelecido mais um requisito para a escolha do médico que viria a resolver o problema. Tratava-se do envolvimento com o problema que eu carregava no rosto já havia vinte anos.
Por essa época, os exames realizados em uma pessoa da família reafirmavam o sucesso de uma cirurgia ocorrida dois anos antes, quando lhe foi extraído um tumor maligno no ânus. A médica responsável, a Dra. Formação, era uma dermatologista que atuava bastante nesse tipo de intervenção e que dedicara bastante atenção em todas as etapas do tratamento.
Coloquei o meu problema para aquela médica e conversamos a respeito durante uns três meses até combinarmos a cirurgia. Durante esse tempo ela deu seguidas demonstrações de atender àquele envolvimento que eu agora também buscava, fato este que somou à impressão favorável pela cirurgia na pessoa da família.
Cirurgias Três e Quatro – Procedimentos
Em outubro de 1990, em uma sala de procedimentos no amplo consultório da Dra. Formação, estava eu de novo sendo submetido a uma cirurgia sob anestesia local, com a presença de um patologista para os exames necessários.
Como já ocorrera nas cirurgias anteriores, me colocava como espectador das imagens refletidas em uma parte do equipamento que iluminava a área da cirurgia. A novidade ficou por conta de uma sensação desconfortável que se apossou de mim ante a repetição das imagens do meu rosto sendo cortado para a retirada daquele mesmo tumor. Estranha sensação, não definida com clareza, talvez uma mistura de ansiedade com o receio de até onde aquilo iria chegar.
Os procedimentos cirúrgicos foram efetuados com bastante atenção, durante aproximadamente uma hora e dez minutos, contemplando inclusive a retirada de tecidos de outras regiões por apresentarem aparência suspeita, segundo a avaliação da Dra. Formação.
Uma semana depois, quando da consulta de revisão, recebi o laudo do exame:
“MATERIAL
1 – Dorso
2 – Face esquerda
3 – Cervical direita
4 – Cervical esquerdo
MACROSCOPIA:
1 – Fragmento cutâneo leucodérmico, medindo 1 cm no seu maior comprimento, elástico, pouco resistente aos cortes, com lesão nodular e elevada.
2 – Minúsculo fragmento cutâneo leucodérmico, medindo 0,5 cm.
3 – Fragmento cutâneo leucodérmico, medindo 1,5 cm, elástico, pouco resistente aos cortes, com lesão pigmentada.
4 – Fragmento cutâneo leucodérmico, medindo 1,8 cm no seu maior comprimento, foliforme, elástico e pouco resistente aos cortes.
CONCLUSÃO:
1 – Nevo intra-dermico. Processo inflamatório crônico com agudização e trajeto fistuloso epidérmico.
A exérese da lesão foi completa.
2 – Nevo intra-dermico com atrofia epidérmica.
A exérese da lesão foi completa.
3 – Epitelioma baso-celular pigmentado do tipo sólido com escasso estroma-reação
A exérese da lesão foi completa.
4 – Nevo intra-dermico com atrofia epidérmica. Ceratose seborreica.
A exérese da lesão foi completa.”
Mais uma vez tive dúvidas se a excisão do tumor havia sido compatível com a margem de segurança que o caso exigia. Da mesma forma que o Dr. Narciso, a Dra. Formação se apoiou no laudo da patologia para me tranquilizar.
Retornei então à vida normal, novamente por um prazo limitado, pois em junho de 1994 o tumor atacaria novamente. Tínhamos agora um histórico que apontava uma periodicidade de quatro anos para a recidiva do tumor. Tanto que a filharada observou: “O pai está de novo com o problema da copa”. Referiam-se à coincidência que se verificava desde 1986, quando as recidivas passaram a coincidir com a realização da copa do mundo de futebol.
Agora eu estava envolto por um intenso ritmo de trabalho, e também um tanto desestimulado em procurar médico para resolver o problema. Ainda mais, estava um tanto incomodado pelo fato de não ter sido possível até então manter a continuidade no tratamento. Nem mesmo pensei em procurar outra opção.
Em julho de 1994, mantidos os mesmos cenário e atores da anterior, uma nova cirurgia foi realizada em aproximadamente uma hora e vinte minutos. Mais uma vez atenta e dedicada, a Dra. Formação procedeu a uma excisão bem mais extensa, conforme atestou o laudo do exame realizado:
“MATERIAL:
1 – Tumor (congelação)
2 – Bordo interno (congelação)
3 – Bordo externo (congelação)
4 – Profundidade
MACROSCOPIA:
1 – Fragmento cutâneo leocodérmico, medindo 5 cm no seu maior comprimento, elástico, pouco resistente aos cortes, com lesão nodular, endurecida, pouco resistente aos cortes e com tecido adiposo subcutâneo.
2 – Fragmento tecidual irregular, medindo 1,5 cm no seu maior comprimento, pardo-esbranquiçado, elástico e pouco resistente aos cortes.
3 – Quatro fragmentos teciduais irregulares, pardo-amarelados, o maior medindo 1,5 cm no seu maior comprimento, elásticos e pouco resistentes aos cortes.
4 – Três fragmentos teciduais irregulares, pardo-esbranquiçados e o maior medindo 0,5 cm.
CONCLUSÃO:
1 – Epitelioma basocelular ulcerado cordonal delgado ou em células isoladas atingindo o tecido celular profundo e alcançando as fibras musculares estriadas esqueléticas.
2 – Epitelioma basocelular cordonal delgado ou em células isoladas atingindo o tecido fibroso e fibras musculares estriadas esqueléticas.
3 – Epitelioma basocelular cordonal delgado ou em células isoladas atingindo o tecido fibroso e fibras musculares estriadas esqueléticas.
4 – Tecido fibroso e reação inflamatória crônica gigantocelular do tipo corpo estranho.”
Observei na ocasião que, ao contrário de todos os laudos anteriores, este não citava como completa a exérese da lesão, mas fui tranquilizado pela argumentação de que haviam sido obedecidos os limites determinados pelos exames realizados durante a cirurgia. Em outras palavras, caso o exame não tivesse acusado a exérese completa, esta teria sido ampliada.
Por precaução, combinamos que eu voltaria à vida normal, mas desta vez devidamente monitorada, o que me levou a realizar consultas frequentes objetivando um acompanhamento criterioso. Em uma dessas ocasiões, no final de março de 1994, após examinar a região da face e nada constatar, foram retirados tecidos de algumas outras partes do meu corpo por apresentarem aspecto que não agradaram à Dra. Formação. O exame realizado posteriormente pelo laboratório de patologia nada acusou de preocupante.
Porém em meados de maio de 1995, nove meses e meio após a última cirurgia, constatei que o tumor se apresentara novamente. Marquei uma consulta e solicitei que fosse retirada uma amostra do tecido para exame, cujo laudo confirmou a recidiva:
“MATERIAL:
Lesão nasogeniana direita
MACROSCOPIA:
Fragmento tecidual medindo 0,2 cms, brancacento.
CONCLUSÃO:
Epitelioma baso-celular.
A exérese da lesão não foi completa.”
Ante esse laudo, a Dra. Formação perguntou quando faríamos a próxima cirurgia, e eu respondi que precisava de tempo para pensar a respeito.
Cirurgias Três e Quatro – Percepções e Constatações
Depois de tantas cirurgias e de tanto tempo convivendo com aquele problema, eu não mais me permitia surpresas, somente achava tudo aquilo desagradável, e muito. Ainda assim, pelo menos em um aspecto havia evolução, pois já me era possível uma percepção mais ampla ainda durante o desenrolar dos acontecimentos.
Por exemplo, quando da sensação desagradável que senti como espectador dos procedimentos durante a cirurgia três, percebi de imediato uma sinalização de que as minhas forças mentais se esvaiam ante a repetição daquela cena, onde mais uma vez o sangue aflorava por conta da ação do bisturi.
De imediato, me veio à mente uma situação ocorrida com o Márcio, um sobrinho por filho de uma prima-irmã, quando ainda um jovem rapaz com a força e o fôlego daqueles que se dedicam à prática da natação. Como morador de uma ilha – São Luís do Maranhão –, Márcio desenvolvera inclusive uma excelente habilidade no trato com o mar, o que lhe deixava a vontade para longos passeios de caiaque pela baia de São Marcos, bastante respeitada pelos locais por palco de frequentes demonstrações de força da Natureza.
Em um belo dia, céu limpo e mar tranquilo, Márcio ousou mais um tanto e se afastou da ilha bem mais do que o usual. Nada irresponsável, afinal as ótimas condições do mar, os braços bons de nado e a terra distante mas sempre à vista, lhe afiançavam a aventura. Bastava evitar a região do canal, o famoso Boqueirão, onde a correnteza muito forte sempre se fazia presente. E então, o compartimento traseiro do caiaque faz água e afunda, levando a pequena embarcação a uma posição vertical em que somente a parte dianteira se mantinha fora d’água.
Avaliadas as possibilidades, foi escolhida a opção de aguardar a passagem de um barco, pois o problema ocorrera numa região que era rota dos veleiros navegando entre São Luís e a baixada maranhense. Era uma questão de tempo e a espera se daria naquelas condições favoráveis em que a aventura havia se iniciado. Márcio então se agarrou ao caiaque que flutuava verticalmente, ficando imerso até o peito, e se pôs a observar o horizonte com aquelas pequenas ondas de mar calmo a lhe roçar o queixo. Vários barcos passaram, longe e ao largo, e nada de resgate.
Com o passar do tempo aquele roçar das ondas no queixo passou a incomodar mais e mais. Era como se as ondas tivessem aumentado de força e tamanho, de tal forma que agora o leve roçar fora substituído por um forte impacto, que exigia cada vez mais das forças do jovem atlético para se manter agarrado ao caiaque. Mantida porém a lucidez, ele se deu conta de que as ondas continuavam as mesmas, a mudança tinha ocorrido nele mesmo. Incontáveis ondas depois elas continuavam iguais em força e tamanho, mas ele já não tinha o mesmo vigor, pois a sua força estava se esvaindo ao longo do tempo.
Já ao cair da tarde, quando a debilidade e o pânico se instalavam, Márcio foi avistado e recolhido por um barco, ainda em tempo. Nos seus relatos posteriores daquela aventura, o destaque ficaria por conta da constatação de que a força dos homens logo se esvai ante a permanência daquela maior que é a da Natureza.
Voltando àquele desconforto quando da cirurgia três, eu resgatara a aventura do Márcio por associação, mas havia diferenças. Primeiro porque eu me defrontava com um outro tipo de permanência, a de problemas na prática da medicina desde vinte anos atrás, que ampliava a extensão e o impacto psicológico daqueles sucessivos cortes no meu rosto. E também porque, naquele momento, o que se esvaia era o componente mental das minhas forças, e ainda não o físico. Percebi aquilo como um primeiro sinal do esforço a que seria submetido. Eu precisaria administrar as minhas forças para chegar ao final daquela luta e vencê-la. Aquele momento era apenas um combate.
Incorporei, e tenho trabalhado desde então, a consciência da força que em mim reside e a necessidade de exercitar o seu uso e a sua permanência.
Força
Pé avante, o outro
Braços em contra-pêndulo
Ar pulmão adentro, afora
Aceleras, conflitas a inércia mantendo o rumo
Harmonizas, tornas una, traduzidas em energia,
Fantásticas funções do corpo que te dão vida
Processos mentais automáticos se estabelecem
Assumem todas aquelas ações que te ocupavam
Agora sentes, teus pés, a areia, o contato, a troca
Suor que aflora à pele, em expurgo
Teu corpo, sem peso, projetado continuamente à frente
Nem bem mais está aqui, mas sim lá, e adiante, e mais...
Flutuas então em sintonia com a Natureza que te cerca
Energia em movimento
Saciado, reduzes o ritmo, caminhas, paras
Alongas teus músculos, mais e mais suor à flor da pele
Imensa energia que cedes ao mar em imersão
Exaurido, de pé, mãos estendidas para as forças que te cercam
Evocas, inspiras profundamente, te integras, te alimentas
Força cuja luz é vista sem que aos olhos, fechados, recorras
Agraciado e agradecido, sentes a brisa que te envolve
O rosto afaga – “fazes parte”
Pressiona o pulsar do teu peito – “estás com a força”
E entrelaça as tuas mãos conduzindo – “vai à luta”
Está na brisa a mão de Deus.
A força agora se fazia necessária, inclusive para manter a serenidade e refletir sobre qual o caminho a tomar. Ocorreu-me então lamentar não ter agregado a propalada competência do Dr. Narciso, que ele não exercera no meu caso com a atenta dedicação da Dra. Formação. É que eu andara questionando se a formação desta, como dermatologista, havia lhe habilitado para a resolução de um caso que multiplicara a sua complexidade ao longo dos últimos vinte e quatro anos. Provavelmente, pensei, o tumor penetrara de tal forma que poderia já haver o comprometimento de tudo o mais que estivesse lá por dentro. Não mais era aquele problema no seu estágio inicial, então restrito a este enorme órgão que reveste o nosso corpo e que é o foco da dermatologia. Optei então, mais uma vez a contragosto, procurar uma outra solução.
Recorrendo a outra prática – Cirurgia 5
Primeiro Contato
Influenciado pelas informações favoráveis a respeito do sistema de saúde da França decidi recorrer a uma outra prática da medicina, o que veio a se concretizar pelas facilidades propiciadas por uma pessoa da família então em Paris. O hospital indicado se apresentava como uma das duas maiores referências a nível internacional no tratamento de câncer, pelo alto nível dos seus profissionais, recursos, e pesquisas realizadas.
Em meados de junho de 1995 tive o primeiro contato com a prática médica na França, em uma longa consulta que se iniciou com o Dr. Humanidade, o chefe de uma das diversas equipes de atendimento do hospital, recomendado por um outro médico francês. Ao longo do meu relato e do estudo de todo o material que eu havia levado, constatada a singularidade do meu caso, outros sete médicos foram chamados – quatro deles especialistas relacionados ao problema, e três médicos residentes. Estes últimos se postaram absolutamente à vontade, questionando os pontos de vista dos demais e fazendo sugestões. O caso foi debatido detalhadamente, resultando consenso quanto ao diagnóstico do problema, e ainda, quanto aos procedimentos a serem adotados.
Dois dias depois voltei ao hospital para o cumprimento das formalidades administrativas de marcação da cirurgia, um processo simples e rápido que foi operado a partir dos dados registrados no meu dossiê quando da consulta inicial.
Cirurgia Cinco – Procedimentos e Preços
No final de julho de 1995 estava eu de volta àquele hospital para o que seria a quinta cirurgia após cauterização inicial do tumor, com procedimentos até então inéditos: internação no dia anterior, jejum, centro cirúrgico e anestesia geral. O argumento para tanto é que, ante a complexidade do caso, a cirurgia deveria demorar o tempo necessário, não cabendo a dispersão pelo controle da duração da anestesia local.
Quando da primeira visita no pós-operatório, o Dr. Humanidade relatou que a cirurgia tinha sido realizada em um tempo aproximado de três horas. Para atender a uma margem de segurança compatível com o caso, a excisão havia chegado ao músculo que controla a mímica, imediatamente acima da parede anterior do seio maxilar – o osso que sentimos ao apertar a bochecha –, mas aquele músculo fora preservado. A reconstrução utilizara a técnica de rotação de retalho das cirurgias anteriores, desta feita com um retalho bem maior, retirado de uma região mais inferior – já no pescoço. O edema que se formou denotava a grande dimensão da cirurgia realizada, mas o pós-cirúrgico ocorreu sem maiores problemas, tanto que no terceiro dia de internação tive alta conforme previsto.
Retornei ao hospital duas vezes, para revisões e encerramento das formalidades administrativas, após o que fui liberado para a volta ao Brasil.
Aqueles serviços médicos me foram cobrados segundo as condições praticadas para os pacientes estrangeiros, a menos dos cidadãos da Espanha, que tinham direito a tratamento gratuito por acordo então firmado entre os dois países. O preço da primeira consulta foi de 150 francos franceses – R$ 26,00 (à época), R$ 63,00 (atual). Já o preço total da cirurgia foi 15.228 francos franceses – R$ 2.672,00 (à época), R$ 6.364,00 (atual). Como determinado pelo regulamento do atendimento aos estrangeiros, cada um dos meus atendimentos foi precedido do depósito de um valor em caução, com posterior devolução do valor a maior em relação ao apurado para os procedimentos efetivamente realizados. Esta rotina, justificou o hospital, era uma precaução que cobria despesas quando de eventuais imprevistos durante o atendimento – por exemplo, uma prolongada internação em unidade de tratamento intensiva –, uma vez que os estrangeiros não estavam cobertos pelo sistema de saúde da França. Para a consulta o valor caucionado foi de 1.000 francos franceses – R$ 175,00 (à época), R$ 418,00 (atual) –, e para a cirurgia foi de 230.000 francos franceses – R$ 40.351,00 (à época), R$ 96.116,00 (atual).
Um Retorno Acompanhado
Na volta ao Brasil, a consciência da necessidade de um permanente acompanhamento me levou a procurar a Dra. Formação. O propósito era tão somente a realização de exames periódicos que permitissem o mais rápido diagnóstico de uma eventual recidiva ou de um novo tumor. Qualquer problema que viesse a ser constatado seria tratado com o Dr. Humanidade. A Dra. Formação se mostrou curiosa pelos procedimentos dos franceses e interessada no acompanhamento, assim procedendo até por volta de meados de 1996, quando o seu interesse já não era mais o mesmo.
Mantendo o propósito daquele mesmo acompanhamento, passei a contar com a Dra. Desconhecimento, uma outra dermatologista que se credenciava não só pela sua prática como também pelos seus investimentos em atualização.
Até dezembro de 1997 permaneceu a inexistência de qualquer indício de recidiva, mas então comecei a sentir um pequeno incômodo que me parecia ter origem na camada mais interna da região. Foi o bastante para que eu voltasse a recorrer aos franceses, sendo atendido pelo Dr. Humanidade em meados do mês subsequente, em uma sala de pequenas cirurgias. Com o propósito de um diagnóstico mais apurado, ele retirou um tanto de tecido daquela camada mais interna entre a pele e o músculo da mímica, que foi examinado de imediato por um patologista também presente. O resultado não acusou qualquer problema, tendo então o Dr. Humanidade aproveitado para realizar uns retoques de ordem estética. Desta feita o valor cobrado foi 946,50 francos franceses – R$ 179,00 (à época), R$ 373,00 (atual).
Voltei então ao acompanhamento com Dra. Desconhecimento, observando que ocorria uma lenta, mas contínua evolução daquele incômodo que já me incomodara anteriormente. Assim permaneceu até o final de 2000, quando ocorreu uma alteração daquele quadro, pois o tal incômodo passou a dar sinais de estar relacionado ao movimento da mímica na face direita, justo na região tantas vezes operada. Nas consultas que se seguiram, a Dra. Desconhecimento levantava a hipótese de uma reacomodação do tecido da região, e respondia negativamente à hipótese de que o tumor estivesse recidivando de baixo para cima. Assegurava que qualquer recidiva seria facilmente observável a olho nu, uma vez que se daria a partir da superfície.
Em meados de março de 2001, acentuado em muito aquele incômodo de evolução lenta, e visível a ulceração da região, um exame de ressonância magnética viria a diagnosticar uma nova recidiva do tumor, que agora se estendia da pele até a parede anterior do seio maxilar. Em suma, um quadro de complexidade extrema.
Cirurgia Cinco – Percepções e Constatações
A medicina francesa havia me impressionado muito favoravelmente. Não só quanto ao modelo, como também quanto aos recursos e práticas.
O modelo dos serviços de saúde é regido por uma política de cunho social, fortemente influenciada pelos movimentos de reconstrução ocorridos após a II guerra mundial, criticada pelos altos custos que asseguram a disponibilidade e a qualidade dos recursos, e ainda, a plena gratuidade no atendimento. Aparentemente ainda hoje nenhuma transformação nesse modelo está em curso, que resiste inclusive às transformações por conta da integração européia. Sintomaticamente, esta integração implicou expandir o atendimento de saúde gratuito a todos os cidadãos da comunidade.
Até mesmo os preços cobrados para os estrangeiros espelham aquela política social. No meu caso, o preço total pago pela cirurgia – R$ 2.672,00 (à época), R$ 6.364,00 (atual) –, é sempre inferior quando comparado ao valor pago somente ao cirurgião em diversas das cirurgias no Brasil. O senão fica por conta do depósito em caução para garantir despesas imprevistas quando do atendimento dos estrangeiros, o que me parece inclusive evitar uma sobrecarga dos serviços de saúde na França.
A disponibilidade dos médicos, que me chamara à atenção já na primeira consulta com o Dr. Humanidade, decorre da contratação de profissionais em regime de dedicação exclusiva, aparentemente recompensada com uma remuneração compatível, considerado não só a citada disponibilidade, como também alguns detalhes revelados durante a minha estadia. Por exemplo, em um breve relato da expectativa do Dr. Humanidade quanto às férias que se aproximavam, após um ano de muito trabalho, e que seriam merecidamente gozadas na sua casa de veraneio, em lugar aprazível na costa da Espanha.
A prática médica, que também me chamara à atenção já naquela primeira consulta, é fundamentada no trabalho em equipe, incentivando o compartilhamento de experiências e a agregação de competências dos diversos especialistas, o que se torna viável pela disponibilização dos profissionais. Os médicos franceses me pareceram absolutamente à vontade no trabalho em equipe, inclusive no que diz respeito aos cuidados com o processo de formação dos residentes. De tal forma que, pelo menos aparentemente, os cuidados com as formalidades sociais no trato com a hierarquia em nada inibem o comportamento dos médicos em formação. Nesse ambiente, o direito de questionamento e opinião por eles exercido acaba beneficiando a todos os envolvidos, contribuindo inclusive para corrigir eventuais percepções indevidas dos médicos mais experientes, que afinal – por humanos – não são infalíveis.
Os médicos franceses têm então a conveniência de poder concentrar em um único local – o hospital a que estão vinculados –, os meios suficientes para um bom desempenho do seu trabalho e reconhecimento dos seus resultados. Mas têm também a consciência do nível de cobrança da sociedade com relação às práticas médicas, que inclusive implicam penas judiciais severas, efetivamente aplicadas, em casos de erros ou omissões naquelas práticas.
Por último, a prática administrativa do hospital francês também se fez notar favoravelmente, pela disponibilidade dos funcionários e pela qualidade dos seus processos de atendimento – as pessoas realizam o seu trabalho e coisas funcionam.
Porém, o tumor estava de volta. Antes de tudo me ocorreu lamentar não ter recorrido à medicina francesa ainda no estágio inicial daquele meu problema. Em seguida, a consciência da enrascada em que eu havia me metido, com aquele tumor que havia se expandido além do inconveniente, perseverando mesmo diante de uma prática médica muito mais própria. Com a dimensão que alcançara, aquelas células lançadas à frente no seu processo de expansão pareciam cada vez mais se distanciar, pondo em questionamento a possibilidade de sua excisão completa. Por último me ocorreu a possibilidade de que o Dr. Humanidade tenha cedido aos sentimentos quando se viu diante da decisão de extrair ou preservar o músculo da mímica. E neste músculo, então preservado, já residia uma daquelas células lançadas bem mais à frente da área livre de comprometimento detectada pelos exames durante a cirurgia.
Provocando o incêndio – Cirurgia 6
A Escolha
A extensão da nova recidiva não deixava dúvidas quanto à dimensão da cirurgia que viria pela frente. Teríamos desta vez um pós-cirúrgico com um prazo bem mais dilatado, dificultando a continuidade do tratamento no exterior. Obtive então uma cópia do meu dossiê no hospital francês, incorporando-o à documentação a respeito do caso, e parti em busca de uma nova opção no Brasil, tendo como público-alvo os médicos ligados à entidade mais representativa da oncologia. Aquele a quem eu recorrera para certificar esta mais nova recidiva era um deles, mas não sendo um especialista em cabeça e pescoço, como requisitado pelo meu caso, deu a sua contribuição naquele diagnóstico inicial e se colocou à disposição para o apoio que se fizesse necessário.
Recorri então a uma segunda opção do público-alvo, um ex-diretor daquela entidade, indicado por uma amiga. Após avaliar o meu caso, em atendimento no seu consultório, ele recomendou o Memorial Hospital, em Nova York, como a melhor opção. Dessa recomendação o ganho ficou por conta da consulta que fiz ao site daquele hospital, particularmente quanto às informações a respeito dos tipos de tumor.
Como próximo passo procurei um médico conhecido da família, também ligado àquela entidade mais representativa da oncologia, com o propósito de uma indicação. Ao me receber em seu consultório, ele discordou da indicação do Memorial Hospital, comentando: “Ele não perde essa mania de indicar pacientes para aquele hospital americano, mas nós temos ótimas soluções por aqui”. Em seguida falou do que lhe parecia ser a melhor opção para o meu caso, o Dr. Hipócrates, um médico com muitos méritos e muitos anos de prática, que teria inclusive contribuído para a formação médica do Dr. Narciso (O Caso é sério, vamos ao “Papa”), quando seu chefe.
Em seguida estive no consultório do indicado, que se mostrou extremamente atencioso. Após análise detalhada do caso, comentou os procedimentos da cirurgia destacando que o comprometimento da parede anterior do seio maxilar implicaria na excisão daquele osso, mas que a reconstrução não ficaria comprometida, mesmo sem a utilização de prótese em substituição ao osso. Perguntado sobre a prótese, foi sintético: “É desnecessária, e essas placas de titânio que estão sendo usadas podem provocar problemas”. Quando falamos de orçamento, o Dr. Hipócrates relatou que operava em conjunto com um cirurgião plástico para os procedimentos de reconstrução, o Dr. Interação, e me convidou para irmos ao seu consultório. Declinei do convite e pedi um tempo para pensar a respeito do que conversáramos.
Em verdade eu achara agradável o jeito atencioso do Dr. Hipócrates, mas não ficara confiante na reconstrução sem a utilização de prótese. Afinal, como eu lhe comentara sem nenhuma contestação, havia o propósito de manter a prática do vôlei e do tênis, momentos em que renegamos ao bom senso e elegemos a bola como o objeto de valor maior, e por ela nos jogamos sem qualquer receio do choque. Mais adiante, como veremos, eu voltaria a falar com o Dr. Hipócrates e viria a conhecer o Dr. Interação.
Ainda sem opção definida, me ocorreu fazer contato com um médico do sul do país, cuja equipe tratara com sucesso o complexo caso de um tumor de face em um amigo de longa data. Falamos pelo telefone demoradamente, concluindo ele que o meu caso era mais próprio para um oncologista de cabeça e pescoço que atuava em um outro estado, tendo então me dados os dados para contato.
Assim, no início de abril de 2001 viajei para a primeira consulta com esse oncologista, o Dr. Gerência, que viria a ser o escolhido para a continuidade do tratamento. Tal escolha começou a ser delineada pela segurança por ele demonstrada já nesse primeiro contato, quando expôs de forma ampla e clara todas as questões inerentes ao problema e à solução. Colaborou também o fato de que eu não tenha identificado nele nenhum dos traços pessoais e profissionais que àquela altura já me pareciam indevidos, pelas experiências anteriores. Mais ainda, a escolha foi também influenciada pelas diversas menções elogiosas que ouvi a respeito daquele médico, inclusive em matéria publicada pela revista Veja citando-o como um dos cinco melhores na sua especialidade, assim como pela sua aparição no Jornal Nacional da TV Globo, em um longo depoimento a respeito de questões relacionadas à oncologia.
Todos os contatos que antecederam à cirurgia foram feitos sem qualquer participação do cirurgião encarregado dos procedimentos de reconstrução. Mantive a solicitação de um encontro, mas achei que aquela ausência não era impeditiva, uma vez que o Dr. Gerência seria o responsável pela equipe.
O Planejamento
Considerando que as imagens da ressonância magnética e o histórico do caso configuravam com clareza o estágio do problema, o Dr. Gerência dispensou um exame complementar de tomografia computadorizada – mais próprio para o diagnóstico da situação do tecido duro (osso) –, e colocou as seguintes propostas para a cirurgia:
- A excisão do tumor seria bastante ampla e deveria contemplar inclusive o músculo da mímica e o osso – este último provavelmente em uma extensão ampla, a ser delimitada durante o ato cirúrgico;
- Seria feito o implante de um retalho de considerável dimensão, em procedimento microcirúrgico, a partir de tecido retirado das costas ou do braço – tendo optado por esta última hipótese por se tratar de um tecido mais maleável;
- Para efeito de sustentação do retalho, se faria necessário recompor a parede anterior do seio maxilar com a colocação de placas de titânio, que segundo ele estavam sendo utilizadas sem problemas, ao contrário da opinião anterior do Dr. Hipócrates, que foi contestada quando comentei a respeito.
Debatendo essas proposições em detalhes, recorri à objetividade dos números perguntando quais as estimativas dos prazos para o meu retorno às atividades cotidianas, tendo o Dr. Gerência citado:
- Para as atividades profissionais, dez dias;
- Para exercícios físicos, trinta dias;
- Para plena recomposição da aparência, sessenta dias.
Finalmente, foram acordados os aspectos de ordem administrativa e financeira. A cirurgia seria realizada no hospital onde o Dr. Gerência dirigia o departamento relacionado à sua especialidade, considerado como referencial para o problema em questão. Havia a vantagem adicional de que as despesas de internação ficariam a cargo do plano de saúde ao qual eu estava associado há tempos. Já as despesas com a equipe médica ficariam a meu encargo, sendo o pagamento feito via depósitos na conta do Dr. Gerência, contra recibos emitidos pela secretária do departamento do hospital.
Cirurgia Seis – Internação e Procedimentos
No último dia de abril de 2001, o processo de internação no hospital teve início com a atendente solicitando o formulário emitido pelo plano de saúde – a Guia Hospitalar –, onde este autorizava a internação responsabilizando-se pelas despesas hospitalares, ressalvando que as despesas com a equipe médica ficavam por minha conta. A atendente considerou a autorização válida após as devidas conferências, após o que solicitou um cheque no valor de R$ 6.000,00, para efeito de caução. Não adiantando os meus argumentos em contrário, e pressionado pelo momento em que me encontrava – o Dr. Gerência havia estabelecido urgência para a cirurgia –, solicitei à minha filha que emitisse um cheque dela, já que eu não previra a necessidade de trazer o meu talão para o hospital. Assim feito, a rotina foi em frente, tendo se encerrado com a atendente comentando estar tudo bem com a internação e me desejando boa sorte na cirurgia. Como veremos adiante, ela errou quanto ao comentário e não foi feliz quanto ao desejo.
Após considerável tempo consumido para a internação, fiquei no quarto esperando a visita do cirurgião plástico, encontro que ocorreria em atenção às minhas solicitações anteriores. Quarenta minutos antes da cirurgia, o Dr. Prática se apresentou e, antes de qualquer palavra minha, declarou: “O senhor não se preocupe. Tenho uma aparência jovem, mas já tenho uma grande experiência nesse tipo de cirurgia”. Realmente, a aparência jovem era um fato tão incontestável que punha em dúvida a grande experiência, parecendo não ter havido o tempo necessário para tanto. Ainda sem emitir uma palavra, entregue que estava a uma rápida reflexão reativa, me ocorreu que naquele instante somente restava a opção de reforçar a confiança já depositada no Dr. Gerência. Como chefe daquela equipe, ele haveria de fazer prevalecer a sua experiência. Fiz uso então da palavra, no sentido de reforçar as preocupações colocadas para o Dr. Gerência.
A cirurgia decorreu em um tempo total de aproximadamente nove horas e meia. Pouco mais do primeiro terço desse tempo foi dedicado à excisão do tumor, o que evoluiu progressivamente em função dos resultados dos exames de congelação intra-operatórios, cujo laudo está referenciado logo adiante. Encerrada a excisão, se seguiu um momento de reflexão da equipe médica sobre se, e como, utilizar as placas de titânio como planejado. Reafirmada aquela opção, o Dr. Prática fixou as placas como registrado em fotografia naquele momento.
Em continuidade, o Dr. Prática tomou o meu braço direito como doador de um retalho de grandes proporções, contendo desde a pele até uma substancial parte da camada mais interna do tecido. E por fim, em demorado procedimento microcirúrgico que contemplou inclusive a sutura de vasos primários para a irrigação sanguínea do retalho, foi feito o implante para a recomposição da região.
Pelo longo período em que estive submetido à anestesia geral, encerrados os procedimentos da cirurgia fui encaminhado para uma sala de tratamento semi-intensivo, onde passei a noite. O retorno à consciência não se deu de uma forma tranqüila, pelo contrário, exigindo bastante esforço para quem saia de uma cirurgia como aquela, e alguns cuidados da equipe de enfermagem e da minha filha, cuja presença acabou por facilitar aquela retomada.
Na manhã seguinte, eu estava de volta ao quarto com a consciência já plenamente restabelecida, com a atenção dividida entre as duas regiões afetadas pela cirurgia. No rosto, por conta de um edema de enormes proporções, uma sensação de permanente e velada ameaça, ante as dores por qualquer movimento. No braço, por conta de uma sutura de aproximadamente vinte e cinco centímetros, que lhe tomava dois terços, passava pelo cotovelo, e continuava por um tanto do antebraço – delatando o quanto doador ele havia sido –, uma dor aguda a cada esforço de tensão. Pior ainda quando necessário se deslocar até o banheiro, pois o suporte para soro e medicamento administrados pela veia não dispunha de rodinhas para facilitar o seu deslocamento. Quando solicitei a troca do suporte, fui informado que aqueles com rodinha estavam trancadas em um depósito e que a chave estava com um funcionário ausente naquele dia, por feriado.
Ainda naquele dia o Dr. Gerência me visitou no quarto, tendo comentado que a excisão do tumor havia sido bastante extensa, como previsto, reduzindo substancialmente a possibilidade de recidiva. Ainda assim, recomendou tratamento por radioterapia, para uma segurança ainda maior. Perguntado do porque o braço direito como doador do retalho, ele reconheceu que seria melhor o esquerdo, mas me tranqüilizou quanto à plena recuperação do braço.
No segundo dia após a cirurgia eu estava de alta e pude viajar de volta para casa. Levei comigo o laudo emitido pelo departamento de anatomia patológica do hospital, que em suas quatro páginas descrevia treze exames intra-operatórios e concluía com um diagnóstico e uma nota:
“DIAGNÓSTICO:
Pele de face (Ressecção)
Carcinoma basocelular esclerodermiforme, com infiltração da musculatura estriada.
Invasão perineural: presente e extensa
Margens cirúrgicas: livres de neoplasia
Margens ósseas medial, lateral, superior e inferior: livres de neoplasia
NOTA:
1 – O presente espécime foi submetido a 13 exames de congelação intra-operatórios com controle por inclusão do material em parafina, que se encontra em nossos arquivos.
Material submetido a exame de congelação: nervo infra-orbitário, margem de periósteo, margem medial, margem lateral, margem superior, margem inferior, margem de gengiva superior, margem de mucosa de lábio superior, partes moles de asa nasal, pele de lábio superior, asa nasal e vertente nasal.
2 – O material enviado como parede anterior de antro-maxilar está em processo de descalcificação. O resultado da análise histológico seguirá posteriormente em laudo complementar.”
Esse laudo complementar me foi entregue três semanas após, documentando sinteticamente:
“Diagnóstico: Osso (parede anterior de antro-maxilar), livre de neoplasia.”
O antro-maxilar citado nesses laudos é uma outra designação utilizada no meio médico para o seio maxilar já mencionado anteriormente. Na foto intracirúrgica, a parede anterior ocupava o plano horizontal em que estão colocadas as placas, e fechava, naquele plano, o espaço vazio que é visto na foto.
Cirurgia Seis – Pós-Cirúrgico
A primeira revisão da cirurgia veio a ocorrer em uma viagem de um dia, quando estive com o Dr. Prática pela manhã, no hospital, e com o Dr. Gerência à tardinha, no seu consultório, uma vez que os dois médicos não se encontrariam naquele dia. Um esforço razoável para o mal estar então sentido, amenizado pela gentileza da secretária do Dr. Gerência que me proporcionou repousar em uma sala com leito enquanto aguardava a chegada dele.
A revisão com o Dr. Prática foi feita rapidamente, até pelo número de pacientes do hospital que o aguardavam. Já com o Dr. Gerência foi feita em um tempo bem maior, contemplando não só a retirada de alguns pontos, como também uma lista de dúvidas que eu havia levado. Uma delas dizia respeito a uma dor aguda que eu sentia quando, ao abrir a boca ou ao sorrir, o tecido da mucosa interna à bochecha era pressionado contra os dentes. Após examinar a região, o Dr. Gerência diagnosticou que se tratava de um sintoma de certa forma esperado, pelo pequeno prazo decorrido da cirurgia, provavelmente ocasionado por algum ponto ainda não devidamente cicatrizado.
Já a segunda revisão seria feita somente com o Dr. Gerência, um pouco mais de um mês após a cirurgia, no seu consultório. Desta feita contemplando a retirada de pontos, a requisição da radioterapia que se iniciaria em seguida, e novamente, uma lista de dúvidas. Mais uma vez, a principal delas dizia respeito àquela dor aguda já tratada na revisão anterior, que se mantinha, tendo se repetido o diagnóstico da causa – um ponto ainda não cicatrizado.
Mas havia também dúvidas quanto à validade dos prazos de recuperação previstos pelo Dr. Gerência quando do planejamento da cirurgia, inclusive pelo quadro infeccioso que se estabelecera pouco antes dessa segunda revisão, delatado por uma inflamação, pela cor da secreção purulenta expelida e por um odor desagradável durante a respiração. E ainda, uma estranha sensação de um sabor de salmoura – como se eu já a tivesse provado antes –, em algumas situações não identificadas que ocorriam enquanto assoava o nariz. Naquela ocasião eu falara pelo telefone com o Dr. Gerência, quando combinamos que mesmo antes da revisão eu procuraria aquele médico que ajudara no diagnóstico da última recidiva, ocorrendo a este recomendar a administração de antibiótico. Quanto aos prazos de recuperação, o Dr. Gerência não se mostrou tão seguro como nas previsões iniciais, e quanto à infecção, reafirmou a sua aprovação anterior do tratamento com antibiótico e recomendou continuidade por um pouco mais.
O Processo (Inspirado em Franz Kafka) – I
Nessa segunda revisão também conversamos a respeito da minha estranheza com os processos administrativos do hospital, motivada por um telefonema recebido um pouco antes. Nele, a responsável pela cobrança informou que o plano de saúde ainda não pagara as despesas hospitalares da cirurgia, e ainda, que o cheque deixado em caução seria descontado em quatro dias caso o problema não fosse resolvido. Não obstante os incômodos do pós-cirúrgico que persistiam, solicitei que me fosse encaminhado um FAX documentando a pendência, no sentido de facilitar o contato com o plano de saúde. O documento recebido, no entanto, citava que apenas três dos itens da cobrança haviam sido negados pelo plano, relacionando um deles de forma imprecisa e dois outros de forma indevida: Quatro placas de titânio, caracterizadas como material importado – quando haviam sido duas (como explicitado na foto intracirúrgica), de fabricação nacional (segundo relatado pelo Dr. Gerência); Duas noites na unidade de tratamento semi-intensiva – quando havia sido somente uma.
Mesmo assim, telefonei para o plano de saúde e solicitei que o pagamento fosse agilizado, argumentando que a demora implicava inconveniente esforço adicional de um paciente em complicado momento de recuperação. Fui informado que não obstante a demora na interação com o hospital, o pagamento sairia em breve, mas não contemplaria as placas de titânio. Estas ficariam ao meu encargo, uma vez que não estavam cobertas pelo contrato da empresa à qual eu estava vinculado – o que procedia, conforme apurei. Retornei então a ligação ao hospital, quando comentei a respeito dos erros no FAX que me fora encaminhado, relatei o contato com o plano de saúde, e solicitei que a cobrança das placas fosse direcionada para mim. Aproveitei ainda para solicitar maiores cuidados do hospital com os pacientes, principalmente aqueles em pós-cirúrgico, mais ainda aqueles com cirurgias complexas.
Dessa forma – concluí o meu comentário com o Dr. Gerência – esse episódio se somara à falta do suporte com rodinhas, que tanto me incomodara quando internado, para uma avaliação ruim dos processos administrativos do hospital. Ele concordou e justificou o problema como uma decorrência da falta de sintonia entre as diversas correntes políticas formadas pelos médicos-gestores. Em breve relato, citou que originalmente o hospital era plenamente mantido por um importante grupo industrial, que se encarregava inclusive da nomeação da diretoria. Em determinado momento, face aos problemas de gestão enfrentados, o grupo industrial resolveu transformar o hospital em uma fundação, colocou-se como um dos seus mantenedores e abriu mão da participação na gestão, que ficou tão somente a cargo dos médicos. Ocorrera-me na ocasião apenas uma primeira experiência com os problemas da gestão hospitalar, o que viria a ser reforçado mais adiante.
Radioterapia, Pneumonia e Incêndio
No dia onze de junho de 2001, quarenta e um dias após a cirurgia, foi iniciada a radioterapia em uma clínica para a qual fui recomendado por um médico amigo da família. O tratamento foi precedido de uma programação, elaborada a partir do especificado na requisição do Dr. Gerência, e ainda, da confecção de uma máscara que eu utilizaria durante as aplicações, no sentido de assegurar o direcionamento das emissões para a área a ser tratada, poupando a região em volta dos efeitos da radiação. Tive também algumas informações a respeito de prováveis conseqüências do tratamento: perda dos pelos e ressecamento da mucosa das narinas; menor produção de saliva, implicando boca seca.
Esse tratamento se estendeu até o dia 18 do mês subseqüente, segundo o resumo documentado pela clínica:
“O paciente recebeu 50 Gy/25 frações, técnica de campos angulados e dirigidos à hemi-face direita, com fótons 6 MV, acelerador linear, de 11/06 a 18/07/01. Em 15/07/2001 apresentou quadro de febre persistente e uma radiografia de tórax confirmou consolidação em base de pulmão esquerdo, com resolução após o início de antibióticoterapia”.
A pneumonia relatada irrompeu com sintomas agudos de febre e calafrios, aproximadamente duas semanas após o início de um chiado durante a expiração mais forte enquanto praticava umas brandas flexões – o exercício possível para a ocasião.
Antes disso, ainda em junho, duas ocorrências com repercussões distintas. A primeira, muito provavelmente motivadora da pneumonia, decorreu de uma imprudência cometida durante a transmissão de um jogo de tênis do Guga em Roland Garros, em um dia excepcionalmente quente para aquele mês. Incomodado com o calor e evitando o ar refrigerado, busquei uma cadeira de praia em desuso há tempos e passei em frente ao ventilador ligado, acabando por respirar a poeira que ficou em suspensão – um enorme risco naquele momento, sobre o qual eu ainda não havia sido informado. Poucos dias depois teria início o chiado quando da expiração mais forte.
Mas a segunda das ocorrências havidas naquele mês de junho teve repercussões muito mais graves, sendo constatada no consultório da minha filha. Como dentista, ela me examinava periodicamente com o propósito de se antecipar às eventuais decorrências dos problemas que se desenvolviam logo acima da sua área de atuação. Naquele exame ficou constatado que o tecido em volta de um dos parafusos havia cedido, abrindo uma grande comunicação – uma fístula, nos termos médicos – entre a cavidade oral e o seio maxilar. Levantando o lábio superior direito, a comunicação era vista como um buraco na gengiva, acima do canino e do primeiro pré-molar, com aproximadamente seis milímetros de diâmetro, do qual se projetava a ponta da placa – na foto intracirúrgica (página 41), a ponta em questão é a inferior da placa mais à esquerda.
Esse problema ocorrera justamente na região daquela dor aguda relatada ao Dr. Gerência já desde a primeira revisão, para a qual ele sempre apontara um ponto não cicatrizado como causa. Mas aquela fístula vinha agora atestar um outro diagnóstico. A causa real tinha sido a fixação imprópria da placa agora exposta, uma vez que a ponta do parafuso inferior havia praticamente adentrado a boca durante o ato cirúrgico. A dor aguda se dava pelo contato da ponta do parafuso com o tecido da mucosa interna da bochecha, tecido este afetado em muito pela cirurgia. Lembrei-me então daquela sensação de gosto de salmoura, sobre a qual conversara com o Dr. Gerência durante a segunda revisão, pouco mais de um mês após a cirurgia e ainda antes da radioterapia. Aquele gosto fora um claro indicativo de que o tecido em volta do parafuso já havia cedido tão somente pela ação do parafuso, abrindo a porta para a comunicação que viria a se estabelecer em dimensão maior pelos efeitos da radioterapia, que no seu propósito de consumir os tecidos comprometidos não distingue os demais da área irradiada.
Aquele parafuso havia potencializado os danos aos tecidos mole (mucosa) e duro (osso) em sua volta, propiciando a fístula – um problema grave com o qual eu viria a conviver durante os próximos dezesseis meses, e que deixaria seqüelas depois de solucionado.
O Processo (Inspirado em Franz Kafka) – II
Constatada a fístula falei com o Dr. Gerência pelo telefone, tendo ouvido dele: “É muito ruim que tenha acontecido isso. Mas seria pior se o senhor viesse a parar com a radioterapia. Recomendo que ela seja concluída, após o que resolveremos o problema”. Dei continuidade ao tratamento, mas senti um primeiro desgaste na confiança que depositara até então naquele médico, tendo me ocorrido ouvir uma outra opinião a respeito do que estava acontecendo.
Procurei o Dr. Interação, o cirurgião plástico citado pelo Dr. Hipócrates em uma das consultas que antecederam a escolha do Dr. Gerência. Desde então, eu ouvira boas referências quanto às suas habilidades e experiência, especificamente com relação a cirurgias de reconstrução facial – especialidade absolutamente alinhada com o problema que eu me defrontava. Em atendimento no seu consultório, o Dr. Interação iniciou comentando que eu procurara o médico certo, e em seguida começou a discorrer longamente sobre a sua experiência como oncologista. Tive que interceder no sentido de direcionar a conversa para o problema que me levara à sua presença, após o que ouvi as suas opiniões a respeito: A cirurgia não tinha sido bem feita; Independente do problema de fixação, as placas de titânio não deveriam ter sido utilizadas, pelo alto índice de problemas já ocorridos quando aplicadas naquela região; De momento não havia nada a fazer, senão a complementação da radioterapia; Eu deveria conviver um bom tempo com aquela situação adversa, sendo proibido qualquer procedimento cirúrgico a curto prazo, pois não bastasse o efeito da radioterapia, havia ainda todo o quadro estabelecido pela colocação da prótese para assegurar não só o insucesso da intervenção, como também a ampliação dos danos ao tecido da região; Ao final da radioterapia, deveria se seguir um período de acompanhamento com exames periódicos daquele tecido, e somente após a sua recuperação poderia ocorrer a próxima cirurgia.
Consumido pelos problemas que se desenrolavam, voltei a receber um telefonema do hospital comunicando que a conta hospitalar ainda não fora paga pelo plano de saúde, e reforçando a ameaça de descontar o cheque em caução.
Fiz contato com o plano e fui informado que o hospital ainda devia algumas informações, mas que o processo já estava em vias de conclusão na medida em que a maioria das despesas já haviam sido justificadas e aprovadas. Solicitei então ao hospital que me encaminhasse um FAX documentando as pendências e, para grande surpresa minha, recebi uma listagem acusando todas as despesas da hospitalização como pendentes, em total desacordo com o documentado no FAX encaminhado no contato anterior a respeito do assunto, quando somente três dos itens da internação ainda não haviam sido pagos.
Sem alternativa, desisti de ajudar, perdi a confiança nos agentes envolvidos, cancelei o cheque que fora emitido para efeito da caução, e telefonei para o hospital e o plano de saúde comunicando a minha posição e os motivos dela.
Convivendo Com o Inimaginável
Uma semana depois de encerrada a radioterapia, estava eu em consulta com o Dr. Gerência para uma avaliação geral do quadro. Começamos pelo problema maior, tendo ele comentado não lembrar das minhas queixas anteriores de dor aguda na região onde agora estava a fístula. Coloquei então uma síntese dos acontecimentos anteriores, a minha percepção e meus receios a respeito do ocorrido, e em seguida conversamos longamente sobre o problema, ocasião em que, ao contrário do ocorrido até então, não me foi fácil entender com clareza as opiniões do Dr. Gerência. Conversamos ainda sobre outros problemas de menor gravidade, mas também de relevância uma vez considerados os três meses decorridos desde a cirurgia: O braço direito ainda bastante ressentido por doador do retalho; O chiado quando da expiração que ainda persistia, embora com menor intensidade; O crescente desconforto na região onde fora implantado o retalho; O agravamento da irritação na língua e na gengiva, provocada pela radioterapia e acirrada pelo antibiótico; Uma maior sensibilidade do organismo às situações de frio.
Perguntado sobre a possibilidade de que eu recorresse a um médico do Rio para resolver os problemas, O Dr. Gerência se manifestou contrário, recomendando a continuidade do tratamento pelo menos até o fechamento da fístula. A consulta se encerrou com recomendações quanto aos medicamentos e cuidados especiais com alimentação e higiene da boca. Aguardaríamos um tempo para dar continuidade ao tratamento.
Segui então com o aprendizado que aquela fístula impunha, não só no sentido de admitir uma situação inimaginável para quem não tenha enfrentado o problema, como também de amenizar os inevitáveis problemas dela decorrentes. Não foi fácil o desenvolvimento de um processo experimental em que, num primeiro momento, uma mastigação cuidadosa foi tentada no sentido de evitar a penetração do alimento naquele buraco na gengiva, logo acima dos dentes. Diante do insucesso seguiram-se outras experiências, até chegar a uma cuidadosa higiene realizada após qualquer ingestão de alimento.
Essa higiene era precedida do trabalhoso preparo de um ambiente muito específico, cuja peça chave era um espelho de superfície circular com duas faces espelhadas – uma delas com aumento –, e com uma alça articulada dobrável, para permitir múltiplas posições quando do manuseio. Como a higiene demandava o uso das duas mãos, o espelho repousava em cima de um porta-garrafa colocado sobre a bancada da pia, com o propósito de aproximar o espelho do meu rosto. O espelho era repousado em ângulo e posição tais que permitiam simultaneamente iluminar e refletir a fístula quando levantado o lábio com a mão esquerda. O ajuste do ângulo era propiciado pela alça dobrável, e o da posição pela rotação do porta-garrafa, ajustes esses que eram repetidos até que a luz emanada da luminária incidisse diretamente sobre o espelho, e daí até a fístula.
A higiene tinha início com a retirada dos resíduos alojados na entrada da fístula, para o que era utilizada uma escova interdental manipulada com a mão direita, em movimentos lentos também por conta das limitações daquele braço tomado indevidamente como doador do retalho. Seguia-se o uso do fio dental, uma cuidadosa e direcionada escovação, e finalmente, o encerramento, que implicava colocar água filtrada na boca e forçar a sua entrada naquela comunicação, em quantidade e pressão tais que permitiam a sua saída pelo nariz, levando consigo todos os resíduos encontrados ao longo do percurso – a fístula, o seio maxilar e a fossa nasal. No começo isso tudo soava insuportável, mas com o passar do tempo apelei para o verbo: não é assim, apenas está durante um tempo – que viria a ser longo.
Ante tal solicitação, a fadiga da região e do organismo logo se deu, o que me levou a um certo distanciamento da alimentação, que passou a ser pastosa. Todos esses cuidados, no entanto, não coibiam que bactérias da minha boca transitassem pela fístula e chegassem ao seio maxilar, ficando em contato com placas, parafusos e ossos que haviam ficado expostos após a cirurgia – uma lixeirinha, como me ocorreu à época, própria para o quadro de infecção crônica recorrente que então se estabeleceu.
Cirurgia Seis – Percepções e Constatações
Entregue à reflexão, me veio à mente a imagem de um incêndio. Após 31 anos de preparo das condições próprias à combustão, o que se dera desde aquela cauterização feita pelo Dr. Desconhecimento, um parafuso mal fixado na última cirurgia se encarregara do resto.
A severa excisão do tumor, com uma margem de segurança compatível com o histórico do caso, inspirava confiança. Não só pelo explicitado na foto intracirúrgica, mas também pela demora na operação do procedimento. O tempo dessa última cirurgia havia me impressionado favoravelmente, de tal forma que em nenhum momento posterior lamentei ter ficado tanto tempo sob efeito da anestesia, não obstante o enorme esforço que tive para recobrar a consciência – para o que tive ajuda.
Retorno Assistido
Luzes, difusas
Vozes, distantes, de pessoas que parecem próximas
Dores, intensas, por tão pouco movimento e até nenhum
Sonda, soro, fios
Alarme, sons, luzes intermitentes
Cuidados, recomendações
Respirar mais, com a máscara, mais forte...
Frio, muito frio
Caos
Vozes, agora mais próximas
“Ele saiu de uma cirurgia de quase 10 horas”
É isso! – a cirurgia excedeu o previsto
Consciência que se restabelece
“Sr. William, como se sente?”
Mal, penso e não respondo, intensamente dedicado
Busco a força que me parece distante
É vital me desprender deste estado de torpor
Esforço, enorme esforço
Para que tanta luta?
Vale a pena?
Vozes, mais vozes
Paula, minha filha, interfere com zelo
O que me lembra dos laços que o amor estabelece
Lembra vida
Vale, vale a pena.
Para surpresa minha, no entanto, aquele parafuso incendiário havia estabelecido um novo foco de problemas.
Ao longo dos estimados quatro milhões de anos da nossa evolução, a Natureza acabou por dar à vida uma forma fantástica. Tão fantástica, que não obstante todos os conhecimentos que nos são passados pelo estudo e pela observação do que nos cerca, acabamos sem uma compreensão mais apurada do corpo, esse meio físico da vida que melhor representa o que entendemos por sistema, no caso, um conjunto de partes interagindo com o propósito da vida.
Mais fácil se torna a compreensão de suas partes, aí considerados os seus propósitos, composição e funcionamento. É usual, por exemplo, o entendimento de como funciona o chamado sistema digestivo – na verdade um dos diversos subsistemas que compõem o corpo –, e qual o papel nele exercido pelos seus diversos componentes. Mais complexa, no entanto, é a compreensão do que diz respeito ao funcionamento sistêmico do corpo, das interações dos seus diversos subsistemas. Sobre esse assunto, não esclarecido plenamente pelos currículos escolares, e de difícil constatação nas observações práticas que nos cercam, também se faz complexa a percepção de que os nossos diversos subsistemas funcionam fechados em si, a menos das comunicações que se impõem por conta das interações indispensáveis. Por exemplo, a comunicação entre a cavidade oral e o seio maxilar não chega nem mesmo a ser tolerada, por se tratarem de componentes de subsistemas distintos que não interagem.
Antecipando aqui o que entendi em conversas com o Dr. Referência, um médico que eu viria a conhecer mais adiante, aparentemente a Natureza teria dispensado a sua lógica de projetar o estritamente necessário, poupando energia, quando tratou do nosso crânio. Abdicando do mais prático – um osso único, em um exemplo exagerado –, adotou uma solução mais complexa, com um conjunto de ossos devidamente encaixados, alguns deles inclusive permitindo o aparente desperdício de espaços não ocupados – pequenas cavidades ocas chamadas seios da face. Mas essa solução é de uma utilidade absolutamente fundamental, provendo um sistema de defesa da integridade do cérebro em caso de choque. O projeto de um crânio não rígido permite que esse invólucro vá se decompondo enquanto dispersa a energia do choque, preservando o cérebro – o mesmo conceito que viria a ser adotado no projeto dos carros de Fórmula 1 para preservar a integridade do piloto em caso de acidente.
Dois dos seios da face são os seios maxilares, cujas paredes anteriores correspondem aos ossos que sentimos quando apertamos bem no centro das bochechas. Cada seio maxilar conta com um curioso mecanismo para escoamento da secreção que eventualmente se forme no seu interior. Os cílios contidos no tapete muco ciliar empurram a secreção para cima, onde existe a única comunicação do seio maxilar para o escoamento, o que se dá para a fossa nasal onde, também pela ação do tapete muco ciliar, a secreção é empurrada para escoamento pela garganta, ocorrendo ainda a possibilidade de ser expelida quando do assoar do nariz. Dispensando a atuação da gravidade para o escoamento do seio maxilar para a fossa nasal, a Natureza teria cometido um deslize, a não ser que haja uma justificativa: o sistema de proteção ao cérebro se desempenha melhor com os seios maxilares em um plano inferior às fossas nasais.
Mas voltando à fístula que resultara daquele parafuso incendiário, três inconveniências a tornavam intolerável. A primeira, por conta do ambiente mais propício que encontravam as bactérias no seio maxilar, para o qual a Natureza não proveu as defesas da boca. Havia também o fato de que essas bactérias tinham a sua atuação ampliada pelas placas, parafusos e ossos expostos. E por último, a irritação do tecido da região, não projetado para a constante lavagem a que estava sendo submetida. Como resultado, um permanente desgaste do organismo, na defesa de toda aquela contínua agressão, e da mente, pelas repercussões na vida.
Face a Face Com a Natureza
E justo então me foi dado a perceber a Natureza trabalhando permanentemente pela vida. Em determinado momento se estabeleceu um bloqueio no fluxo da água utilizada na higiene, implicando retenção. Aparentemente, tratava-se de um tanto da água que na situação anterior voltava à boca, o que passou a ser coibido pelo bloqueio. Comecei então a sentir uma pressão maior na região – um acréscimo no grande incômodo que já era sentido. Dias depois, enquanto operava a higiene após o jantar, observei que a água retida estava escorrendo pelo meu rosto, saindo por um pequeno orifício na sutura do retalho implantado, sutura esta que já havia cicatrizado plenamente, sem nenhum problema. Acrescentei então àquela já trabalhosa higiene, o procedimento de provocar o esguicho da água retida, bastando para tanto pressionar o retalho.
Decorridas umas duas semanas voltei a observar mudanças, desta feita durante a higiene após o café da manhã. A cicatrização da sutura havia voltado ao estágio anterior, perfeita, não mais havendo o orifício por onde esguichava a água. Mais ainda, observei que ele se tornara desnecessário, pois o bloqueio que impedia o retorno da água para a boca deixara de existir.
Observando pelo espelho toda aquela fantástica mobilização do meu organismo, me ocorreu a percepção de que a Natureza trabalha permanente pela vida, e me senti motivado a participar desse trabalho. Naquele episódio eu contribuíra somente com a minha força em perseverar. Todas aquelas precisas, sincronizadas e inteligentes ações haviam sido coordenadas por uma entidade que ali se fazia presente, e essa presença era refletida pela ocorrência daquelas ações, mas não pelo espelho. Eu estivera face a face com a Natureza.
Cirurgia Seis – Mais Percepções e Constatações
Mas havia também a constatação de causas e efeitos relacionados ao incêndio que se estabelecera. E ainda, uma primeira percepção a respeito daqueles médicos que estavam me atendendo. Ambos haviam desconsiderado os cuidados com o funcionamento sistêmico do corpo, talvez pela complexidade de compreensão a respeito, o que não se justifica para os profissionais da medicina. Tendo a cirurgia ocorrido em uma região para a qual convergem diversas funções – respirar; comer; beber; falar –, com uma anatomia complexa e de áreas limítrofes tênues, e mais, tendo a extensa excisão do tumor resguardado o isolamento da cavidade oral – crítica pelas suas múltiplas funções e pelas bactérias usualmente ali presentes –, a fixação daquele parafuso incendiário foi um erro grosseiro e absolutamente injustificável.
Também haviam desconsiderado o alto índice de problemas já ocorridos quando da aplicação de placas de titânio naquela região, provavelmente por desconhecimento e falta de experiência a respeito. As restrições quanto ao uso das placas, citadas superficialmente pelo Dr. Hipócrates e com maiores detalhes pelo Dr. Interação, viriam a ser reafirmadas cada vez mais em contatos posteriores com outros médicos. Nessas ocasiões foram colocadas algumas soluções para o implante microcirúrgico do retalho independente de placas, configurando ainda mais a impropriedade da utilização das mesmas. Tivemos então um erro duplo: as placas não deveriam ter sido utilizadas, muito menos daquela forma.
Esses erros poderiam até ser esperados de um médico de menor experiência como o Dr. Prática, mas não do Dr. Gerência. Seria uma contradição do que transparecera de todas as recomendações a seu respeito, das conversas que tivemos antes da cirurgia, e até mesmo dos seus cabelos brancos já visíveis e sem nenhum sinal de precocidade. Não consegui qualquer justificativa, mas de toda forma fiquei impressionado com algumas omissões do Dr. Gerência, particularmente em algumas situações óbvias. Primeiro, por ter relevado as estatísticas de insucesso quando da utilização das placas de titânio. Também por ter se omitido quanto à fixação indevida daquele parafuso incendiário, não obstante a sua presença na sala de cirurgia após concluir a excisão do tumor. E mais ainda, por não ter definido previamente o braço esquerdo como doador do retalho em um paciente destro, não obstante a sua própria definição prévia de utilizar tecido do braço.
Essas omissões do Dr. Gerência me pareceram decorrer da falta de consciência do seu papel na administração das cirurgias, de importância fundamental em casos mais complexos como o meu. Ao longo do tempo os acontecimentos viriam a confirmar esse parecer e ampliar a minha percepção a respeito.
Por último, pela minha percepção, a radioterapia não fora causa daquele incêndio. Afinal, a comunicação do seio maxilar com a cavidade oral estava relacionada ao parafuso incendiário, que potencializou devastadoramente a prevista atuação do tratamento tão somente na região em que o parafuso havia sido fixado.
Com efeito, as sequelas previstas por conta daquele tratamento acabaram por não se confirmar: Nas narinas, não houve ressecamento da mucosa e os pelos voltaram a crescer; A produção da saliva não foi afetada. Ocorreu-me, no entanto, que aquela imprudência durante o jogo do Guga em Roland Garros, quando passei com uma cadeira empoeirada diante de um ventilador ligado, poderia ter sido evitada com um melhor nível de informação. Ao ignorar que os efeitos da radioterapia se apresentam como resultado de um processo cumulativo, não me dei conta dos necessários cuidados para me preservar. Lamentavelmente, pois quando daquela imprudência eu já estava ainda mais desprovido das defesas naturais que permitem a filtragem do ar inspirado.
Alimentando o fogo – Cirurgias 7 a 11
Preliminares
Não obstante todos os problemas ocorridos eu me via impelido a continuar o tratamento com aquela equipe. Não me parecia de bom senso o afastamento daqueles que dominavam as peculiaridades dos novos problemas, por causadores dos mesmos.
Assim, pouco mais de um mês após o término da radioterapia estava eu no hospital para uma consulta conjunta, com os Drs. Gerência e Prática, marcada pelo primeiro com o propósito de uma avaliação para a nova cirurgia. O Dr. Prática foi o último a chegar, e após os devidos cumprimentos olhou atentamente o meu rosto e comentou:
– Está ótimo Sr. William! Agora vamos aguardar um tempo para continuar o tratamento.
– O Sr. não falou com ele? – reagi perplexo, dirigindo-me ao Dr. Gerência. E ante o silêncio deste, retornei àquele:
– Doutor, eu estou com um buraco na boca.
Seguiu-se um silêncio maior, após o que o Dr. Prática examinou a região da fístula enquanto era informado a respeito pelo Dr. Gerência, ficando evidente a sua total desinformação. Repeti então tudo o relato anteriormente ao Dr. Gerência, inclusive as inconveniências do convívio com aquela situação, e complementei solicitando que o fechamento da fístula ocorresse o mais breve possível. Houve consenso dos dois médicos pela realização imediata da cirurgia, aparentando uma segurança tal que achei por bem desconsiderar a recomendação contrária do Dr. Interação, feita logo após a constatação da fístula. Até porque, aquele consenso reafirmava o planejado inicialmente pelo Dr. Gerência, quando previra que a continuidade do tratamento cirúrgico poderia ocorrer um mês após o término da radioterapia.
Atendido o foco principal daquela consulta, levantei uma outra questão. Pelo planejado inicialmente, o transplante do retalho para o rosto havia sido feito com uma dimensão maior que a necessária, uma prevenção natural pela posterior acomodação e pelo consumo de tecido que decorre da radioterapia. Encerrado este tratamento, ainda segundo o planejado, o excesso remanescente seria retirado cirurgicamente. Perguntei então da possibilidade de que o excesso do retalho fosse reduzido naquela próxima cirurgia, obtendo a concordância dos médicos.
Fiquei satisfeito, pois aquele procedimento teria resultados bem mensuráveis. É que eu havia identificado na grande dimensão do retalho implantado – que lhe conferia um aspecto de tromba –, um multiplicador das naturais curiosidades das pessoas conhecidas quando me reviam após a cirurgia, o que demandava um bom tempo para explicações. Em um breve momento de descontração naquela consulta, com direito a risos de todos, resumi então a minha expectativa: Menor a tromba, também o seriam as curiosidades e o tempo com as explicações.
Uma vez combinados os procedimentos, o Dr. Gerência se despediu reforçando que não estaria presente à cirurgia, e que eu deveria combinar os detalhes com o Dr. Prática. Acertamos então a data da cirurgia e o valor que eu pagaria como honorários médicos.
O Processo (Inspirado em Franz Kafka) – III
Teríamos desta vez uma novidade, uma vez que o hospital até então utilizado – aquele considerado como referencial para o problema em questão, onde o Dr. Gerência dirigia o Departamento relacionado à sua especialidade –, notificara a suspensão do convênio com o plano de saúde onde eu estava segurado. Assim, combinei com a equipe médica que a nova cirurgia seria realizada em um outro hospital, na mesma cidade, onde o Dr. Prática também atuava e o convênio com o plano de saúde estava ativo.
Precipitação Devastadora – Cirurgia Sete Procedimentos e Pós-Cirúrgico
Em 25 de agosto de 2001, trinta e sete dias após o término da radioterapia, veio a ocorrer a única das cirurgias realizadas com a equipe do Dr. Gerência para a qual eu não teria a documentação formal da ficha operatória, não obstante as reiteradas cobranças que fiz junto aos dois médicos.
A solicitação de autorização do plano de saúde para o pagamento das despesas hospitalares, emitida pelo Dr. Prática, documentou:
“Solicito autorização para procedimento cirúrgico do Sr. William Soares Muniz, que será submetido a ressecção de extensa cicatriz de face mais rotação de retalhos cutâneos (cód. 54.01012-8) no Hospital .........., dia 25/08/2001.”
Já o Resumo de Alta Hospitalar, fornecido pelo hospital onde a cirurgia se realizou, assinada pelo mesmo Dr. Prática, documentou:
“Diagnóstico: Fístula Oronasal
Cirurgia Realizada: Rotação de retalho cutâneo”
Em verdade, podemos resumir que a cirurgia ocorreu com sedação e anestesia local, tendo contemplado: retirada da placa cuja ponta adentrara a boca; excisão de parte do retalho no sentido de reduzir o excesso; curetagem do seio maxilar; rebaixamento de tecido da mucosa superior para efeito de sutura da fístula. Todos esses procedimentos foram realizados com acesso a partir da comunicação que se estabelecera entre a boca e o seio maxilar, dispensando qualquer incisão externa.
A internação se estendeu até o dia seguinte, quando o Dr. Prática autorizou a alta hospitalar após me examinar. Na ocasião, perguntei-lhe se poderia assoar o nariz durante o pós-cirúrgico, uma vez que a pressão exercida sobre a sutura poderia provocar a reabertura da fístula. Sem restrições a respeito desse procedimento, viajei de volta para casa.
Seguiu-se o convívio com aquelas inconveniências já então conhecidas até que, no sexto dia do pós-cirúrgico, uma grande decepção – a fístula estava aberta novamente. Desta vez, ao contrário da anterior, irrompera abruptamente enquanto eu assoava o nariz para eliminar a secreção abundante, tendo sido anunciada por um líquido que escorreu boca adentro com um gosto de salmoura.
Telefonei em seguida para o Dr. Prática que estava viajando em congresso, sendo por ele tranqüilizado, pois o problema seria resolvido com um novo procedimento de sutura. Ao final da conversa, ouvi a seguinte proposição: “Se o Sr. tiver pressa, pode procurar a minha assistente que ela fecha para o Sr. Caso contrário, deixe marcado com a minha secretária para resolvermos logo após a minha volta”. Na dúvida, recorri ao Dr. Gerência, mas este nada teve a acrescentar. Optei então por aguardar a volta do Dr. Prática, marcando uma consulta mais para o final de setembro, uma prudência justificada não só pela constatação de que a fístula adquirira uma dimensão bem maior, como também pela intuição de que algo mais poderia vir a acontecer, o que logo se confirmou.
Poucos dias após a reabertura da fístula, no décimo dia de setembro, eu estava tomado por uma infecção maior que todas as anteriores, com um quadro de febre alta persistente, diarréia e uma enorme produção de secreção purulenta. De tal ordem, que essa secreção chegou a provocar tonteira após invadir a tuba auditiva, e mais, chegou a sair pelo olho direito após subir pelo canal lacrimal, vencendo a força de gravidade. Recorri ao Dr. Gerência pelo telefone, tendo ele receitado um tratamento com dois antibióticos, um deles administrado via oral, outro pela aplicação de solução oftálmica no olho afetado.
Naquela ocasião, induzido pelo bom senso, me ocorreu fazer uma consulta com um otorrino, especialidade até então ignorada não obstante toda aquela encrenca ocorresse na sua área de atuação. Recorri a uma médica que se mostrou por demais cautelosa, impressionada pelo que viu, tendo se restringido a confirmar a medicação recomendada pelo Dr. Gerência e a remover a cera dos meus ouvidos. Não obstante os modestos resultados naquela tentativa, a indução permaneceria, embora dispersa pelos acontecimentos, e a ela eu voltaria mais tarde.
Finalmente, dezenove dias após a reabertura da fístula e com o quadro de infecção um pouco menos severo por conta dos antibióticos, chegara o dia marcado para a consulta com o Dr. Prática. Um pouco antes de sair de casa para o aeroporto, recebi um telefonema da secretária dele comunicando que eu não poderia ser recebido e sugerindo adiamento. Acabei sendo atendido pelo Dr. Gerência, em consulta encaixada na agenda daquele mesmo dia, acertada em telefonema ao seu consultório antes de ir para o aeroporto.
Meu objetivo maior naquela consulta era o exame dos efeitos da infecção na região em volta da cirurgia, uma vez que a extensão do problema para o olho e o ouvido se apresentara como uma novidade preocupante. Na minha lista de dúvidas do dia, o destaque ficava por conta das possíveis seqüelas daquela novidade, mas fui tranqüilizado pelo Dr. Gerência, que respondeu todas as minhas dúvidas, mas se omitiu no que dizia respeito às causas do que estava ocorrendo. Por último, ele me recomendou que eu passasse no hospital onde o Dr. Prática estava realizando cirurgia, segundo o que eles haviam combinado. Na saída, fui surpreendido pela cobrança da consulta, tendo comentado com a secretária que se tratava de uma revisão já incluída no preço pago pela cirurgia, e que fora redirecionada para o Dr. Gerência tão somente pelo impedimento do seu parceiro, comunicado em cima da hora. Mas paguei a consulta, até pelo cansaço sentido naquele momento.
Dosando as forças, imaginei que o desgaste para aquela visita ao Dr. Prática seria admissível, afinal o hospital onde o encontraria estava no sentido do aeroporto. Porém, o trânsito, a chuva fina, a temperatura baixa e o tempo que tive de aguardar pelo médico, acabaram por determinar o contrário. Mais ainda se considerados o resultado daquela rápida visita, que se restringiu à recomendação de um tempo para que a infecção fosse debelada pela medicação. Manteríamos contato pelo telefone para marcar a próxima cirurgia.
Precipitação Devastadora – Cirurgia Sete Procedimentos e Pós-Cirúrgico
Em 25 de agosto de 2001, trinta e sete dias após o término da radioterapia, veio a ocorrer a única das cirurgias realizadas com a equipe do Dr. Gerência para a qual eu não teria a documentação formal da ficha operatória, não obstante as reiteradas cobranças que fiz junto aos dois médicos.
A solicitação de autorização do plano de saúde para o pagamento das despesas hospitalares, emitida pelo Dr. Prática, documentou:
“Solicito autorização para procedimento cirúrgico do Sr. William Soares Muniz, que será submetido a ressecção de extensa cicatriz de face mais rotação de retalhos cutâneos (cód. 54.01012-8) no Hospital .........., dia 25/08/2001.”
Já o Resumo de Alta Hospitalar, fornecido pelo hospital onde a cirurgia se realizou, assinada pelo mesmo Dr. Prática, documentou:
“Diagnóstico: Fístula Oronasal Cirurgia Realizada: Rotação de retalho cutâneo”
Em verdade, podemos resumir que a cirurgia ocorreu com sedação e anestesia local, tendo contemplado: retirada da placa cuja ponta adentrara a boca; excisão de parte do retalho no sentido de reduzir o excesso; curetagem do seio maxilar; rebaixamento de tecido da mucosa superior para efeito de sutura da fístula. Todos esses procedimentos foram realizados com acesso a partir da comunicação que se estabelecera entre a boca e o seio maxilar, dispensando qualquer incisão externa.
A internação se estendeu até o dia seguinte, quando o Dr. Prática autorizou a alta hospitalar após me examinar. Na ocasião, perguntei-lhe se poderia assoar o nariz durante o pós-cirúrgico, uma vez que a pressão exercida sobre a sutura poderia provocar a reabertura da fístula. Sem restrições a respeito desse procedimento, viajei de volta para casa.
Seguiu-se o convívio com aquelas inconveniências já então conhecidas até que, no sexto dia do pós-cirúrgico, uma grande decepção – a fístula estava aberta novamente. Desta vez, ao contrário da anterior, irrompera abruptamente enquanto eu assoava o nariz para eliminar a secreção abundante, tendo sido anunciada por um líquido que escorreu boca adentro com um gosto de salmoura.
Telefonei em seguida para o Dr. Prática que estava viajando em congresso, sendo por ele tranqüilizado, pois o problema seria resolvido com um novo procedimento de sutura. Ao final da conversa, ouvi a seguinte proposição: “Se o Sr. tiver pressa, pode procurar a minha assistente que ela fecha para o Sr. Caso contrário, deixe marcado com a minha secretária para resolvermos logo após a minha volta”. Na dúvida, recorri ao Dr. Gerência, mas este nada teve a acrescentar. Optei então por aguardar a volta do Dr. Prática, marcando uma consulta mais para o final de setembro, uma prudência justificada não só pela constatação de que a fístula adquirira uma dimensão bem maior, como também pela intuição de que algo mais poderia vir a acontecer, o que logo se confirmou.
Poucos dias após a reabertura da fístula, no décimo dia de setembro, eu estava tomado por uma infecção maior que todas as anteriores, com um quadro de febre alta persistente, diarréia e uma enorme produção de secreção purulenta. De tal ordem, que essa secreção chegou a provocar tonteira após invadir a tuba auditiva, e mais, chegou a sair pelo olho direito após subir pelo canal lacrimal, vencendo a força de gravidade. Recorri ao Dr. Gerência pelo telefone, tendo ele receitado um tratamento com dois antibióticos, um deles administrado via oral, outro pela aplicação de solução oftálmica no olho afetado.
Naquela ocasião, induzido pelo bom senso, me ocorreu fazer uma consulta com um otorrino, especialidade até então ignorada não obstante toda aquela encrenca ocorresse na sua área de atuação. Recorri a uma médica que se mostrou por demais cautelosa, impressionada pelo que viu, tendo se restringido a confirmar a medicação recomendada pelo Dr. Gerência e a remover a cera dos meus ouvidos. Não obstante os modestos resultados naquela tentativa, a indução permaneceria, embora dispersa pelos acontecimentos, e a ela eu voltaria mais tarde.
Finalmente, dezenove dias após a reabertura da fístula e com o quadro de infecção um pouco menos severo por conta dos antibióticos, chegara o dia marcado para a consulta com o Dr. Prática. Um pouco antes de sair de casa para o aeroporto, recebi um telefonema da secretária dele comunicando que eu não poderia ser recebido e sugerindo adiamento. Acabei sendo atendido pelo Dr. Gerência, em consulta encaixada na agenda daquele mesmo dia, acertada em telefonema ao seu consultório antes de ir para o aeroporto.
Meu objetivo maior naquela consulta era o exame dos efeitos da infecção na região em volta da cirurgia, uma vez que a extensão do problema para o olho e o ouvido se apresentara como uma novidade preocupante. Na minha lista de dúvidas do dia, o destaque ficava por conta das possíveis seqüelas daquela novidade, mas fui tranqüilizado pelo Dr. Gerência, que respondeu todas as minhas dúvidas, mas se omitiu no que dizia respeito às causas do que estava ocorrendo. Por último, ele me recomendou que eu passasse no hospital onde o Dr. Prática estava realizando cirurgia, segundo o que eles haviam combinado. Na saída, fui surpreendido pela cobrança da consulta, tendo comentado com a secretária que se tratava de uma revisão já incluída no preço pago pela cirurgia, e que fora redirecionada para o Dr. Gerência tão somente pelo impedimento do seu parceiro, comunicado em cima da hora. Mas paguei a consulta, até pelo cansaço sentido naquele momento.
Dosando as forças, imaginei que o desgaste para aquela visita ao Dr. Prática seria admissível, afinal o hospital onde o encontraria estava no sentido do aeroporto. Porém, o trânsito, a chuva fina, a temperatura baixa e o tempo que tive de aguardar pelo médico, acabaram por determinar o contrário. Mais ainda se considerados o resultado daquela rápida visita, que se restringiu à recomendação de um tempo para que a infecção fosse debelada pela medicação. Manteríamos contato pelo telefone para marcar a próxima cirurgia.
O Processo (Inspirado em Franz Kafka) – IV
Consumido pelo convívio com aquele complexo quadro, me restou a agradável constatação de ter sido poupado de qualquer esforço para solucionar problemas na interação do hospital dessa última cirurgia com o plano de saúde. A conta hospitalar fora paga normalmente, não obstante as condições de atendimento semelhantes àquelas no hospital da cirurgia anterior, onde ocorrera problema.
Nesta última internação nem mesmo me fora exigido o cheque caução, uma demonstração de confiança do hospital nos processos administrativos de cobrança.
Precipitação Devastadora – Cirurgia Sete Percepções e Constatações
Mas ocorreria também a constatação de impropriedades muito graves, que diziam respeito à data e aos procedimentos da cirurgia.
Quanto à data, porque ocorrera apenas trinta e sete dias após o encerramento da radioterapia, um prazo muitíssimo exíguo para a recomposição da região submetida a um tratamento como aquele, principalmente o tecido duro – o que compõe o osso. Como conseqüência, ocorreu uma enorme perda óssea em volta do parafuso incendiário retirado, com retraimento de todo o tecido em volta, aumentando substancialmente a comunicação entre a cavidade oral e o seio maxilar, agora uma fenda. Essa impropriedade seria explicitada posteriormente, em consulta com o diretor da clínica onde eu fizera a radioterapia. Após me examinar e se informar a respeito do ocorrido, particularmente quanto a datas e procedimentos, ele não se conteve e externou a sua reflexão em voz baixa: “Ué! Eu pensei que o Dr. ....(Gerência) soubesse que não se mexe tão cedo em osso radiotratado”.
Mais ainda surpreso ficaria o diretor da clínica se tivesse visto a radiografia reproduzida a seguir, feita um pouco antes dessa última cirurgia, onde o parafuso inferior da placa à esquerda é o tal incendiário, que estava exposto dentro da boca. Não obstante essa exposição esteja dissimulada na radiografia por uma aparente margem óssea após a ponta do parafuso – na verdade um osso situado num plano anterior ao parafuso, sob a perspectiva do aparelho de Raios X –, a imagem explicita de forma clara não só a impropriedade da fixação do parafuso, como também o extremo risco da sua retirada em qualquer situação, mais ainda se logo após o término da radioterapia. Tendo analisado essa imagem antes da cirurgia, os médicos responsáveis não souberam, ou não quiseram ler a mensagem de risco nela explicitada com clareza – essa última opção, no caso de pressa em passar a borracha naquele erro grosseiro anteriormente cometido.
Já quanto aos procedimentos realizados, a impropriedade maior da cirurgia se caracterizou pela retirada de somente uma das placas de titânio, mantendo a outra em um ambiente infectado e revestido por um tecido cruento – a parte interna do retalho após a excisão para reduzir o excesso –, sem as necessárias comunicações para escoamento da grande quantidade de secreção purulenta, que ficou represada a ponto de escoar pelo olho. Nesse ambiente, o osso ficaria convivendo com toda aquela secreção purulenta, mais a placa remanescente e seus parafusos. A impropriedade desse procedimento viria a ser reforçada mais adiante, em um comentário do Dr. Interação: “Não tinha que tirar placa tão cedo. E na hora de tirar, não poderia deixar nenhuma”. Para efeito de ilustração, mais de quatro anos e meio após aquela cirurgia ainda ocorre dor quando pressiono o osso, no ponto onde estava fixada aquela placa mantida. Pior, no entanto, são os demais problemas decorrentes, relatados mais adiante.
Também o rebaixamento de tecido da mucosa superior para fechamento da fístula, viria a se revelar um procedimento impróprio. Afinal, aquele tecido também fora submetido aos efeitos da radioterapia, tal qual o da região da fístula. Suturar esse tecido radiotratado logo após o tratamento, sem o tempo necessário à recomposição dos mesmos, implicou não só insucesso do fechamento da fístula, como também maiores danos aos tecidos. Pior ainda, esse procedimento viria a se repetir diversas vezes, causando outros danos progressivamente.
Finalmente, a excisão do excesso do retalho, já naquela cirurgia, viria a se revelar impróprio por precipitado, desconsiderando que aquele excesso seria consumido quando das cirurgias posteriores, e ainda, que ocorreria um retraimento da região por conta dos efeitos residuais da radioterapia. Em decorrência, uma retração na face ainda mais acentuada, implicando diversas inconveniências mais adiante.
Adicionalmente, em complemento às impropriedades cometidas no ato cirúrgico, ocorreram outras durante o pós-cirúrgico.
Quando telefonei para o Dr. Prática informando a reabertura da fístula, ele deixou claro não ter a mínima idéia da dimensão do problema ao propor que eu procurasse a sua assistente para uma nova sutura, caso estivesse com pressa. Ainda bem que eu recusara aquela proposição, pois os danos teriam sido maiores ainda.
Já ao Dr. Gerência, quando da manifestação aguda da infecção, não ocorrera qualquer outra sugestão senão a administração de antibiótico e a ingestão de muito líquido. Mesmo com o conhecimento detalhado das condições adversas que fundamentavam o problema, não lhe ocorreu nenhuma ação que encurtasse o tempo da crise, como por exemplo, a drenagem da secreção purulenta represada. Pelo que pude observar posteriormente em repetidas situações similares, essa ação abreviaria a fase aguda da infecção, minorando as seqüelas pelo convívio da secreção purulenta com aquele ambiente de osso, placas e parafusos.
Mais ainda, o Dr. Gerência voltara a demonstrar dificuldades quanto à administração, desta feita com relação à parceria com o Dr. Prática. No início da consulta que antecedeu à última cirurgia, marcada com o propósito de uma avaliação conjunta dos problemas decorrentes do parafuso incendiário, ficara claro que o assunto não havia sido discutido pelos dois médicos. Não obstante a gravidade daqueles problemas, reconhecida pelo Dr. Gerência nos diversos contatos que mantivemos antes que ele marcasse aquela consulta conjunta, não lhe ocorrera nem mesmo comentar com o seu parceiro a respeito.
Ouvindo Outras Opiniões
Apreensivo, me vi novamente impelido a ouvir outras opiniões, começando por aquele médico conhecido da família a quem já recorrera antes da escolha do Dr. Gerência. Como um conhecido antigo, ele se colocou novamente muito à vontade durante a nossa conversa, dispensando maiores formalidades sociais. Em determinado momento, quando manifestava o meu pensamento, ele interrompeu: “Desculpe William, mas o paciente não tem que pensar nada. Recomendo que você.....”. Sem nenhum resultado quanto a outras questões, e atendendo a minha curiosidade sobre aquela sentença proibitiva, acabamos por nos estender sobre a condenação do pensamento do paciente – também sem resultado.
Mas eu não abdicaria do pensamento. Motivado pela continuidade dos problemas no tratamento, eu viria a consultar alguns médicos indicados, tendo como propósito primário evitar problemas previsíveis. Exemplificando, eu não teria concordado com a colocação de placas e parafusos, caso tivesse melhor informado a respeito das estatísticas e das decorrências dos problemas a respeito. Mais ainda, e também importante, havia o propósito de que aquelas consultas pudessem vir a revelar novos caminhos para a solução do meu problema, aí considerados não só as técnicas cirúrgicas como os recursos – médicos inclusive.
Os resultados, no entanto, não foram muito compensadores, exclusive quando recorri à clínica do médico considerado como referência da cirurgia plástica. Havia nesse caso não só o interesse de ouvir a opinião de quem alcançara aquele estágio profissional, como também a expectativa pela contribuição de um competente especialista em reconstrução, que certamente devia compor a equipe da clínica.
No primeiro contato com aquele referencial da cirurgia plástica, quando iniciei o meu relato observando que o pequeno pedaço de gaze no meu rosto escondia uma longa estória e um grande problema, nada transpareceu que pudesse colocar em dúvida a sua opinião. Após detalhado exame, ele qualificou a minha observação inicial como própria, não só pelo já ocorrido como também pelo que se fazia necessário para uma complexa reconstrução de uma região radiotratada. Logo, complementou ele, seria interessante que antes eu recorresse a um medico experiente em oncologia e reconstrução, pelo que recomendou o Dr. Narciso (O Caso é sério, vamos ao “Papa”). Ante a minha recusa, ele aquiesceu com um simples meneio da cabeça, e recomendou que eu fosse encaminhado para um outro médico da clínica, especialista em reconstrução de face, e que depois voltasse a ele.
A consulta que se seguiu veio a agregar informações absolutamente úteis para o entendimento daquele problema que me consumia, não só pelo domínio do especialista quanto às informações, como também a forma clara com que foram colocadas. Em verdade aquela aula se devera à prática médica por ele exercida, que não dava à consulta um foco restrito à cirurgia, mas sim um foco abrangente, contemplando inclusive os cuidados a serem observados pelo paciente enquanto convivendo com o problema. Daí a necessidade de informá-lo sobre a anatomia e o funcionamento das diversas partes atingidas, como também as causas e efeitos dos problemas ocorridos. Valera a pena conhecer o Dr. Referência, esse especialista que se credenciara naquela consulta como referencial da prática médica, e voltaria a fazê-lo ao longo do tempo.
Retornamos ao médico referencial da cirurgia plástica, quando o Dr. Referência colocou a sua proposição, entre as quais o procedimento de fechamento da fístula, que seria feito segundo a técnica adotada pelo Dr. Prática, quando o tecido estivesse em melhores condições para a sutura. Fiquei de pensar a respeito da proposta, mas doravante eu passaria a pensar mais e melhor a respeito do problema e das suas causas, sem dúvida.
O Processo (Inspirado em Franz Kafka) – V
Paralelamente àqueles contatos, a continuidade do tratamento com o Dr. Gerência e seu parceiro implicou mais quatro cirurgias em um período de aproximadamente seis meses, todas realizadas naquele hospital onde o Dr. Gerência dirigia o Departamento relacionado à sua especialidade, que voltamos a utilizar pela conveniência de um menor deslocamento da equipe médica. Uma vez que esse hospital continuava a não trabalhar com o meu plano de saúde, as despesas hospitalares passaram a ficar ao meu encargo, mas as despesas médicas deixaram de ser cobradas em caráter particular, sendo pagos somente os valores correspondentes cobrados pelo hospital.
Esforço Concentrado – Cirurgias Oito a Dez
Dessas quatro cirurgias, três tiveram em comum o fato de serem tratadas como ambulatorial, não obstante realizadas no centro cirúrgico para facilitar o acesso à região operada, sob anestesia local, com alta imediatamente após o procedimento. A reabertura da fístula logo após cada cirurgia, com progressivos danos ao tecido da região, foi o fato comum às quatro.
Em resumo:
Cirurgia 8 – Em 23/10/2001
Em consulta conjunta com os dois médicos, horas antes da cirurgia, o Dr. Prática citou o nome de uma técnica para fechamento da fístula – incompreensível para os leigos – e perguntou se o Dr. Gerência tinha alguma experiência a respeito. Ele respondeu negativamente, omitindo qualquer opinião a respeito. Perguntado sobre a tal técnica de nome incompreensível, o Dr. Prática exemplificou recorrendo a dois dedos contíguos da mão: “Se rasparmos as partes que se tocam quando eles estão juntos, até que essas partes fiquem em carne viva, e depois amarrarmos esses dois dedos, a cicatrização daquelas partes raspadas se incumbirá de colar os dedos”.
Saímos daquela consulta com a definição de que a técnica de “raspagem/cicatrização” seria utilizada.
A Ficha Operatória preenchida pelo Dr. Prática documenta:
“23/10/2002 Tratamento cirúrgico de fístula oro nasal
- Pac DDH
- Antissepsia com PVPI + coloc. campos estéreis
- Infiltração c/sol. Xylo 1% + Marca 0,25% + adr. 1:200.000
- Identificada fístula oro nasal à D
- Ressecção de seu trajeto epitelizado
- Confecção de retalhos locais
- Revisão hemostasia
- Suturas com Vicryl 4-0
- Curativo”
O Histórico do Tratamento Clínico/Cirúrgico (Apêndice I), arquivo onde passei a registrar o resumo dos eventos do meu caso médico, documenta:
“Nova tentativa (2ª) de fechamento da fístula (fenda), por “raspagem/cicatrização”, com sutura de retalho da mucosa superior (rebaixando o vestíbulo); Fístula não fechou”
A dose de fortes emoções nesta cirurgia ficou por conta de um razoável sangramento ocorrido quando eu saia do hospital a caminho do aeroporto, uma vez que o Dr. Prática esquecera de colocar o tampão na narina do lado da cirurgia.
Cirurgia 9 – Em 29/11/2001
Esta seria a terceira tentativa de fechamento da fístula, que agora correspondia a “uma pequena abertura remanescente”, segundo o comentado pelo Dr. Prática em consulta realizada duas semanas antes.
Mas desta feita a cirurgia teria como propósito a retirada daquela segunda placa de titânio, que lá permanecera com seus parafusos e a secreção purulenta. O Dr. Prática e o Dr. Gerência haviam concluído que ela estava atrapalhando.
A Ficha Operatória preenchida pelo Dr. Prática documenta:
“29/11/2002 Retirada de placa maxilar D + fecha/to fístula
- Paciente DD a 30º
- Preparo habitual de face e região oral
- Anestesia local mucosa labial e mucosa jugal sup D c/ xilocaina + adrenalina 1:200.000
- Aplicação de incisão mucosa labial tipo Caldwell-Luck D
- Deslocamento até nível de placa metálica
- Retirada de placa e parafusos de osteossíntese
- Hemostasia com BE
- Sutura retalho mucosa descolado sobre fístula oro-antral c/ ptos em “U” Vicryl
- Limpeza local”
O Histórico do Tratamento Clínico/Cirúrgico (Apêndice I) documenta:
“Retirada da segunda placa; Nova tentativa (3ª) de fechamento da fístula, com sutura de retalho da mucosa superior (rebaixando o vestíbulo); Único pós-cirurgico sem antibiótico preventivo; Fístula não fechou.”
Desta feita, a dose de fortes emoções ficou por conta da minha mala de documentos, que repousava em cima da mesa onde fui colocado no centro cirúrgico. Durante todo o tempo da cirurgia fiquei a duvidar da inocência daquela mala em termos de contaminação – o que me era assegurado pelos presentes –, uma vez que pouco antes eu a colocara no chão do toalete do aeroporto. É que eu não conseguira deixá-la fora do centro cirúrgico, motivo pelo qual fizeram com que ela me acompanhasse, não obstante as minhas observações quanto ao seu passado recente.
Cirurgia 10 – 21/02/02
Em toda essa série de quatro cirurgias, esta foi a realizada com o maior prazo em relação à anterior – dois meses e três semanas –, pela ocorrência de dois eventos. O primeiro, no final de dezembro de 2001, quando o quadro de infecção crônica recorrente se agravou, implicando longo tratamento com a administração de antiinflamatório e antibiótico – colírio inclusive, pois voltara a escoar secreção purulenta pelo olho. O segundo, no início de fevereiro de 2002, quando foi realizado um delicado tratamento dos canais do dente canino, uma vez que o ápice estava comprometido por contaminação da tal infecção crônica.
Pelos problemas havidos, e atendendo a minha solicitação, dois dias antes dessa cirurgia foi realizada uma consulta conjunta para avaliação do quadro. Ficou então combinado que seria utilizada anestesia geral, com dois dias de internação.
A Ficha Operatória preenchida pelo Dr. Prática documenta:
“21/02/2002 Rotação de retalho cutâneo p/ fístula intraoral
- Paciente DD a 30º sob anestesia geral
- Preparo habitual de face
- Infiltração xilocaina 2% com adrenalina em mucosa jugal e palato superior D
- Infiltração conforme demarcação de retalho de palato
- Incisão liberadora de mucosa jugal superior
- Curetagem seio maxilar direito
- Sutura retalho sobre fístula intra-oral
- Exérese de canino D
- Tamponato seio maxilar com Surgicel
- Colocação de Beriplast mucosa oral”
O Histórico do Tratamento Clínico/Cirúrgico (Apêndice I) documenta:
“Rotação material do palato para a região da fístula; Nova tentativa (4ª) de fechamento da fístula, com sutura de retalho da mucosa superior (rebaixando o vestíbulo); Excisão do primeiro pré-molar; Curetagem do seio maxilar; Ampliação da comunicação entre o seio maxilar e a fossa nasal; Fístula não fechou”.
Dois desses procedimentos foram realizados pelo Dr. Prática sem qualquer menção prévia. Após a cirurgia ele argumentou que a rotação de retalho do palato visara compensar as pesadas perdas ósseas com aquele tecido mais duro, e ainda, que a excisão do primeiro pré-molar – e não o canino, como indevidamente documentado pelo Dr. Prática na ficha operatória –, se dera não só por conta da exposição da raiz no interior do seio maxilar; como também pelas dificuldades que aquele dente estava causando no procedimento de sutura da fístula.
Já a ampliação da comunicação entre o seio maxilar e a fossa nasal fora uma tentativa programada do Dr. Prática, no sentido de impedir o seio maxilar velado, um problema que então já se revelava como crônico.
O Processo (Inspirado em Franz Kafka) – VI
Quando desta última cirurgia o hospital já voltara a trabalhar com o plano de saúde, voltando a ficar a cargo deste as despesas hospitalares. Voltou também a solicitação intimidatória do hospital para que eu resolvesse problemas na interação dos processos daquelas entidades, inclusive com a remessa de um boleto bancário de cobrança, para que eu fizesse o pagamento caso não obtivesse sucesso nos meus esforços junto ao plano de saúde. Menos mal, que desta vez tratava-se de um problema mais simples – somente um dos itens faturados ainda não havia sido pago –, o que foi resolvido após algum esforço, inclusive com a minha interveniência na própria operação do processo do plano de saúde.
Esforço Concentrado – Cirurgia Onze
Cirurgia 11 – 30/04/02
Eu chegaria a essa última cirurgia da série após recorrer algumas vezes à otorrino que me atendera anteriormente, ante a permanência do quadro infeccioso e das suas repercussões na garganta e nos ouvidos. Não obstante a modesta ajuda daquela médica que permanecia impressionada com o quadro, a iniciativa se justificou pelo alívio dos incômodos, reafirmando a importância daquela especialidade médica em um caso como o meu.
Aqueles incômodos também viriam a provocar duas consultas com o Dr. Prática, sem qualquer participação do Dr. Gerência, coerentemente com uma atitude de omissão por este assumida ao longo do tempo, não só quanto a sugestões durante as consultas conjuntas, como também ao retorno de alguns telefonemas em que deixei recado. Essa atitude se manteria não obstante algumas cobranças que fiz, recorrendo inclusive à imagem de que em verdade eu contratara os seus cabelos bancos. Ainda assim, mantive o procedimento de submeter à sua aprovação todos os procedimentos, inclusive a data e o objetivo dessa última cirurgia.
A Ficha Operatória preenchida pelo Dr. Prática documenta:
“30/04/2002 Rotação de retalho cutâneo p/ fechamento de fístula intra-oral
- Paciente DDH
- Preparo habitual face
- Anestesia local intra-oral (arcada superior D)
- Incisão margens da fístula
- Rotação de retalho de mucosa conforme demarcação
- Sutura por planos
- Limpeza local
O Histórico do Tratamento Clínico/Cirúrgico (Apêndice I) documenta:
“Nova tentativa (5ª) de fechamento da fístula, com sutura de retalho da mucosa superior (rebaixando o vestíbulo); Curetagem do seio maxilar; Ampliação da comunicação entre o seio maxilar e a fossa nasal; Fístula não fechou”.
Uma Memória Alentadora
Em uma manhã de domingo com céu azul e sol ameno, própria para a prática do esporte ao ar livre, as coisas não estavam nada bem.
Abatido física e mentalmente pela convivência com aquele quadro já há mais de um ano, eu me vi na dúvida perante uma cesta de frutas com aparência e cheiro muito apetitosos. O apelo era forte, mas ceder a ele implicaria uma trabalhosa higiene da boca com o dispêndio de alguma energia, o que estava em falta naquele momento. Tanto, que me poupei até mesmo de qualquer decisão, permanecendo um bom tempo com as mãos apoiadas na bancada da cozinha, testa recostada no armário e rosto voltado para baixo.
De passagem, meu filho percebe e intervém:
– Você queria estar na praia, jogando vôlei, não é pai?
– É mesmo filho. Está muito chato, mas vai passar.
Porém, eu não tinha lá muita certeza do vai passar, pensei e omiti, protegendo o seu fim de semana.
Essa omissão me levou à reflexão do quão tênue é a linha que divide dois caminhos tão mutuamente exclusivos, como aqueles que então eu me defrontava: a perseverança pelo melhor da vida ou a desistência – o deixa estar. Emparedado por aquela situação adversa, que impunha longa e compulsória abdicação das atividades da vida normal, à margem inclusive das sensações de utilidade e de prazer, eu estava caminhando perigosamente em cima daquela linha. Fazia-se urgente decidir qual a opção a tomar, o que me levou a procurar posição mais confortável. Comer ou não as frutas que se insinuavam era uma decisão para depois.
Sentado confortavelmente, tive a sorte de constatar uma substancial perda muscular ocorrida naqueles últimos tempos, me incomodando em particular a atrofia observada nas coxas. Sem dúvida, as diversas cirurgias, a alimentação deficiente pela restrição ao alimento sólido, e o distanciamento da prática do esporte, tinham afetado substancialmente o meu físico. A única atividade ainda possível, já que o tênis e o vôlei de praia eram absolutamente impraticáveis, se restringia a eventuais caminhadas na areia da praia, sempre que o complexo quadro permitia. Após aquela constatação, contrariando toda e qualquer suposição quanto às suas decorrências, uma agradável surpresa de como a vida proveu fantásticos recursos de autodefesa.
Em vez de lamentos e indignações por todo aquele contexto desfavorável, a minha mente priorizou tão somente o incômodo com a atrofia da coxa, resgatando a memória de uma cena ocorrida há tempos, numa época de adaptação a uma nova vida de solteiro. Nela, estou dedicado ao ato de lavar louças enquanto converso despretensiosamente com a Claúdia, que chegara de surpresa, pelo que a recebi com mãos no detergente e corpo em trajes menores – permitidos pela relação já então estabelecida. Eu conhecera aquela muito bela e simpática moça justo quando o seu noivado começara colapsar, o que se estendia até a época da cena e impedia a Claudia de consumar umas intenções que nos eram comuns. Ocupado com outras oportunidades, mas atraído também pelo ótimo jeito daquela moça, eu até já a admitira somente amiga. Voltando à cena, eu lavando e falando muito e Cláudia olhando e ouvindo muito, até que finalmente ouvi a sua voz: “Também, você aí com essas coxas.....”.
O resgate daquela memória viria então a me mobilizar para a melhor das opções. Pelo melhor da vida, eu resolveria aquele problema, voltaria à normalidade que inclui as prazerosas atividades esportivas, fortaleceria as coxas, e ainda, manteria em forma aquela arma de sedução.
Esforço Concentrado – Percepções e Constatações
Mas eu não teria pela frente uma batalha fácil. O insucesso nas cinco tentativas de fechar a fístula demonstrara que a razão estava com o Dr. Interação, ao condenar qualquer intervenção cirúrgica antes que a região se recuperasse dos efeitos da radioterapia.
Naquele momento, o tratamento contratado junto ao Dr. Gerência resultara a fístula da foto reproduzida a seguir, com todo o tecido da região extremamente ressentido e tendendo à necrose, e com danos à maxila, gengiva e dentes. Resultara também um organismo combalido pela sucessão de cirurgias, pelo quadro de infecção crônica recorrente e pelas restrições alimentares. E mais ainda, desencadeara a gradativa evolução de uma sensação de pressão em toda a minha face direita.
Todo esse quadro desastroso refletia a má atuação dos Drs. Gerência e Prática, exceção feita à excisão do tumor já então realizada há mais de um ano, para o qual não havia nenhum indício de recidiva. Um ótimo resultado tendo em vista o meu histórico, onde duas das cinco recidivas haviam ocorrido ainda dentro daquele prazo.
De resto, o esforço concentrado com essas últimas quatro cirurgias havia ampliado a constatação de impropriedades muito graves, que desta vez diziam respeito às datas e aos procedimentos. Quanto às datas, porque o curto espaço de tempo entre as cirurgias – um total de seis em apenas 12 meses –, jamais permitiu que o tecido da região pudesse se refazer dos traumas, o que justifica não só o insucesso dos resultados, como também o sucessivo agravamento do quadro. Considere-se ainda que entre as cirurgias ocorriam constantes infecções, que cada vez mais se expandiam para as regiões vizinhas – anteriormente o olho, mais recentemente o dente canino.
Já quanto aos procedimentos realizados, as impropriedades se fariam notar em tempos distintos.
De imediato se fizera notar como imprópria a excisão do primeiro pré-molar, sob o argumento da raiz exposta no seio maxilar, o que não se sustentava perante os exames radiográficos então disponíveis. Mais adiante, fui informado que, caso existisse, aquela exposição teria implicado uma grande probabilidade de que a excisão do dente causasse uma fístula óssea, o que não veio a ocorrer. Assim, acabei admitindo que a causa verdadeira estaria associada às reclamações feitas pelo Dr. Prática quando das duas cirurgias anteriores, acusando que aquele dente estaria dificultando o sucesso da sutura da fístula. Entretanto, como veremos logo a seguir, o problema da permanência da fistula residia na técnica que estava sendo utilizada, sem nenhuma relação com aquele dente sacrificado impropriamente.
Pior ainda, esse sacrifício implicaria seqüelas ainda maiores quanto à dentição, uma vez que aquele primeiro pré-molar sustentava uma prótese substituta do dente que lhe era contíguo – o segundo pré-molar. Na falta desses dois dentes, e na impossibilidade de um tratamento dentário definitivo à época, foi então colocada uma prótese móvel provisória. Em decorrência, o possível de alimentação não pastosa – um sólido bem macio –, passou a ser mastigada quase exclusivamente no lado esquerdo, uma necessidade já estabelecida desde que a fístula irrompera por conta do parafuso incendiário. Essa mastigação incorreta, a longo prazo, viria a danificar as gengivas das duas arcadas do lado esquerdo, e ainda, causar prejuízos à recomposição óssea da maxila do lado direito – pela falta do exercício natural da utilização.
Um outro procedimento impróprio se faria notar progressivamente, ao longo daquela série de cirurgias. Dizia respeito à técnica utilizada nas repetidas tentativas de fechar a fístula, rebaixando a mucosa superior para efeito de sutura, implicando enxerto de um tecido substancialmente afetado pela radioterapia e pelos problemas ocorridos anteriormente. Esse procedimento, além de comprometer o fechamento da fístula, acabou por provocar outros danos de ordens funcional e estética. De ordem funcional, por prejudicar ainda mais a já complexa e trabalhosa higienização da boca, tendo em vista a conjugação de um substancial rebaixamento do vestíbulo – o espaço entre os dentes e a mucosa interna da bochecha, onde passamos a escova para remover resíduos de alimento –, com uma também substancial pressão sobre aquele vestíbulo rebaixado, decorrente da progressiva da depressão da face.
Já o dano adicional de ordem estética ficaria por conta de um substancial levantamento do lábio superior direito, de tal ordem que impedia o fechamento da boca, provocando um espaço por onde freqüentemente escorriam saliva e resíduos de alimento.
Haveria finalmente uma terceira situação, em que a impropriedade de procedimentos somente veio a ser constatada um bom tempo mais adiante, em função das etapas posteriores do tratamento. À época, somente os seus sintomas se fizeram notar.
O primeiro desses sintomas foi o contínuo represamento de secreção e a constante preocupação que lhe dedicava o Dr. Prática. Não obstante o assunto tivesse sido tratado em todas as cirurgias, quando da penúltima ele chegou a dar um destaque maior a respeito. Na revisão daquela cirurgia, ao constatar que o seio maxilar estava novamente quase velado, chegou a comentar que gostaria de abrir totalmente a comunicação entre o seio maxilar e a fossa nasal, mas que tinha dúvidas por conta da possibilidade de alteração da minha voz. Na ocasião, sem qualquer referência a respeito, cheguei a pensar que a dificuldade expressada pelo médico se devia tão somente à singularidade do meu caso, mas na verdade ela refletia a sua falta de domínio quanto aos procedimentos e técnicas que dizem respeito à otorrinolaringologia, pelo que eu pagaria um alto preço.
Um segundo sintoma revelaria a falta de domínio dos dois médicos da equipe quanto aos conhecimentos da infectologia. Naquele momento que já evidenciava um quadro de infecção crônica recorrente, e a antibioticoterapia – quando aplicada – foi o suficiente para debelar a fase aguda das infecções, mas não no sentido de debelar o problema. Em um momento mais adiante eu estaria como sitio próprio para o desenvolvimento de bactérias diversas.
Pelas duas situações, fez-se evidente que o sucesso do meu tratamento estava condicionado inclusive a uma equipe com maior multidisciplinaridade. Mais ainda, também se fez evidente a carência do compartilhamento de experiências no meio médico. Em um hospital considerado como referência para casos como o meu, eu presenciara a dúvida de um dos seus médicos de maior destaque – inclusive orientador dos cirurgiões da sua especialidade –, sem qualquer recurso de consulta a casos similares. Isto, numa época de valorização plena da informação, cuja disponibilidade está assegurada pelos fartos recursos da própria tecnologia da informação. Bem verdade que o Dr. Prática também não se propôs a perguntar a respeito, talvez por uma distorção da competição entre os profissionais da medicina.
De toda forma, a mim coube o ônus pelo aprendizado daquele médico tão somente através da sua própria prática.
Imprescindível Mudar, Mais Uma Vez
Ao longo de um ano de tratamento, problemas crescentes e expectativas em sentido contrário. E destas, agora, nada mais restava. Além de tudo o já exposto havia também o que me fora dado a perceber das características próprias daqueles dois médicos.
O Dr. Prática havia se revelado um jovem cirurgião plástico de grande habilidade manual, conforme demonstrado quando do implante microcirúrgico do retalho, tanto no âmbito externo como na ligação dos vasos de irrigação sanguínea, resguardando o sucesso estético e o vigor da vascularização do retalho.
Mas também havia se revelado com uma perspectiva restrita na prática médica. Pelas constatações ao longo do tratamento, essa minha percepção se estabeleceu em dois momentos distintos. No primeiro, quando da cirurgia onde foi feito o implante microcirúrgico, a atenção do Dr. Prática havia se localizado estritamente naquele implante, não lhe ocorrendo uma perspectiva mais ampla, sistêmica, na qual a o entorno assumisse uma relevância maior. Só assim se justificaria o tal parafuso incendiário e todos os demais problemas constatados. Em um segundo momento, na verdade ao longo das cinco tentativas de fechamento da fístula, a atenção do jovem cirurgião plástico se restringira à sutura com rebaixamento de tecido da mucosa, não obstante os repetidos insucessos e os evidentes danos causados à região.
Essa perspectiva restrita – uma característica que chega a se insinuar como tendência entre os cirurgiões, justificando inclusive uma atenção especial por conta das entidades educacionais relacionadas à formação médica –, no caso do Dr. Prática me pareceu estimulada por um traço próprio, explicitado em uma das nossas conversas durante as cirurgias realizadas com anestesia local. Perguntado sobre o seu curso de doutorado, ele colocou:
– Ainda bem que estou concluindo o curso. Não sou muito de ficar lendo, meu negócio é estar aqui praticando.
– Mas a leitura não é importante, para incorporar conhecimentos? – perguntei
– Nós médicos trocamos experiências, o tempo inteiro.
Eu me defrontava então com um médico com dificuldades quanto à incorporação de conhecimentos já disponibilizados no seu meio. Confessadamente, a leitura não era do seu gosto, e a troca de experiências com o meio médico, embora considerada por ele como relevante, não coibira o desconhecimento de informações absolutamente relevantes e divulgadas entre os médicos – o alto índice de problemas com a utilização de placas de titânio na região da minha cirurgia, por exemplo. Fui induzido à conclusão de que, no caso do Dr. Prática, a incorporação de conhecimentos estava única e exclusivamente relacionada um processo experimental de tentativa e erro, o que lhe era propiciado pela sua intensa prática cirúrgica.
Essa conclusão remete inclusive a uma outra conversa posterior. Após comentar com o Dr. Prática uma aparente incoerência manifestada na sala de espera por alguns pacientes em tratamento, quando os seus comentários a respeito de dor e desconforto eram acompanhados de elogios ao seu trabalho, perguntei-lhe:
– É uma incoerência, ou a dor é inevitável?
– Às vezes ocorre. Eu estou vendo que não está bom, mas eles me são extremamente gratos – respondeu ele, sugerindo uma justificativa:
– Talvez porque aqui tratamos uma doença tão grave.
Concordei de imediato, comentando que perante um problema como o câncer a tendência é uma fragilidade que arrefece o nível de exigência, muito mais no cenário Brasil. No entanto, essa menor exigência tende a distorcer a opinião dos pacientes quanto aos reais resultados dos tratamentos, exigindo dos profissionais da medicina plena consciência a respeito.
Por último, conhecedor do distanciamento do Dr. Prática em relação à leitura, me ocorreu a ilação de que muito provavelmente ele não lera a respeito da psicologia cognitiva, leitura esta que também muito provavelmente nos teria poupado daquele tão danoso parafuso incendiário.
Para justificar essa ilação, recorramos novamente ao livro Psicologia Cognitiva, já citado em Primeiros Indícios, onde o autor Robert J. Sternberg nos coloca um estudo comparativo dos processos cognitivos controlados com os automáticos. Das características que os diferenciam cabe destacar que os processos controlados exigem completo conhecimento consciente, consomem muitos recursos de atenção, e têm níveis relativamente altos de processamento cognitivo (exigindo análise ou síntese). Em oposição, os processos automáticos geralmente ocorrem fora do conhecimento consciente, consomem recursos de atenção insignificantes, e têm níveis relativamente baixos de processamento cognitivo (análise ou síntese mínima).
É comum, segundo o autor, que tarefas que começam como processos controlados, finalmente se tornem automáticos, e vice-versa.
Cita ainda o autor que os erros humanos podem ser classificados em enganos ou lapsos. Os enganos são erros na escolha de um objetivo ou na especificação de um meio para atingi-lo e estão relacionados aos processos controlados. Já os lapsos são erros na realização de um meio intencional para alcançar um objetivo, estando relacionados aos processos automáticos.
Voltando então à ilação, podemos admitir que o Dr. Prática pudesse ter operado a fixação daquelas placas como um processo automático, com menor atenção e baixo processamento cognitivo, o que justificaria um lapso como a colocação do parafuso incendiário. No entanto, se informado a respeito dos processos cognitivos poderia ter evitado o lapso, transformando aquela tarefa de fixação em um processo controlado. Para tanto, bastaria que se permitisse a pergunta que deve ser feita pelos cirurgiões antes de qualquer procedimento, mesmos os mais simples – algum risco em especial?
No caso, a resposta lhe induziria à máxima atenção para a fixação dos parafusos, própria de um processo cognitivo controlado, ante a constatação de que a área de fixação da placa era limítrofe com uma região crítica como a boca.
Decepção não seria a melhor palavra para traduzir o que eu sentia após as percepções e constatações que me ocorreram pela atuação do Dr. Prática naquele meu tratamento. Afinal este é um sentimento relacionado a quebra de expectativas, o que não ocorrera para aquele médico que eu viria conhecer minutos antes da sua primeira intervenção no tratamento. Naquele momento, as minhas expectativas já estavam estabelecidas pelos resultados dos contatos anteriores com o Dr. Gerência, este sim o responsável pelas expectativas favoráveis. Eu iniciara aquele empreendimento, contratando um serviço junto o Dr. Gerência, após conversar tão somente com ele, e pagara o valor total dos serviços a ele.
Sem dúvida, ao optar pelo Dr. Gerência como o resolvedor daquele problema que me consumia há anos, eu depositara nele uma confiança ampla, inclusive quanto à qualidade dos recursos que ele viesse a utilizar e também a administração desses recursos – equipe médica inclusive. Dessa forma, as ressalvas quanto à atuação do Dr. Prática eram em verdade ressalvas ao Dr. Gerência, como responsável pelos serviços contratados.
Quebra de expectativas havia então era com o Dr. Gerência, a quem eu deveria direcionar as minhas decepções por diversos motivos, a menos da excisão do tumor, procedimento sobre o qual não se apresentou nenhuma ressalva.
Decepção em algumas situações, pela constatação de que a experiência daquele médico não correspondia ao seu renome, cabendo destacar: adoção de placas de titânio; fixação daquele parafuso incendiário; realização de cirurgia logo após o término da radioterapia; retirada de somente uma placa, permanecendo a outra; curto período entre as cinco cirurgias para fechamento da fístula.
Decepção pelas repetidas demonstrações de dificuldades do Dr. Gerência quanto ao planejamento e administração do tratamento, me levando a admitir que o assunto mereceria atenção especial das entidades educacionais relacionadas à formação médica.
.Quanto ao planejamento, um primeiro destaque diz respeito à falha que acabou propiciando o meu braço direito como doador do retalho para o implante microcirúrgico, não obstante a minha condição de destro e a definição prévia de que o retalho seria retirado do braço. Um outro destaque diz respeito à absoluta inconsistência dos prazos previstos pelo Dr. Gerência antes de iniciar o tratamento, não obstante a extensão do problema por ele reconhecida através dos exames disponibilizados para o planejamento.
Já quanto à dificuldade demonstrada pelo Dr. Gerência na administração do seu parceiro médico, fiquei informado mais adiante que não era um problema localizado, já tendo ocorrido em situações anteriores com outros parceiros. Mesmo admitindo a influência de alguns traços da personalidade do Dr. Gerência, a observação de problemas similares em outras parcerias médicas me induziu à percepção de dificuldades dos profissionais da medicina no trabalho em equipe, mais um assunto que me pareceu merecer atenção especial das entidades educacionais relacionadas à formação médica.
Por outro lado, se estabeleceu algum nível de dúvidas em relação a motivação para a progressiva omissão do Dr. Gerência durante o tratamento, aí consideradas: As omissões de retorno de telefonemas; Atitude passiva de permanente concordância das sugestões do Dr. Prática; Esquecimento de falar com o Dr. Prática sobre a fistula antes da consulta conjunta em que o assunto foi tratado pela primeira vez; Cobrança daquela consulta de revisão de cirurgia que ele fizera por impedimento do Dr. Prática, e que já fora paga a este. Nessas situações poderia haver a intenção de demonstrar um “não tenho nada a ver com isso”, uma deliberada estratégia de distanciamento daquele caso que havia se transformado em insucesso. Minha dúvida se reforçava quando da concordância do Dr. Gerência nas diversas ocasiões em que reforcei ser ele o médico que eu havia responsabilizado pelo sucesso do tratamento, e que esse era o motivo pelo qual fazia questão de que todas as decisões a respeito fossem por ele aprovadas.
E eu, naquele momento?
Fisicamente, a força se esvaia, como ficou claro na viagem de volta para casa logo após aquela última cirurgia do esforço concentrado. Eu não mais tivera forças para carregar a pasta, para o que tive de contar com a tripulação.
Mentalmente, a força perseverava no sentido do melhor da vida.
Conclui então que estava na hora de suspender aquele tratamento.
Em busca do bombeiro – O lado humano em exposição
A dualidade se apresenta (Dr. Jekyll prevalece)
Preliminares
Em maio de 2002 eu estava decidido a evitar cirurgia a curto prazo. Seria dado um tempo para a recomposição da região comprometida pelo incêndio, e do organismo como um todo.
Mas havia uma outra decisão a tomar. Novamente eu estava à procura de um médico para a solução do problema, e desta vez ela partiria daquele universo já conhecido, delimitado pelos contatos que eu havia feito em busca de outras opiniões sobre o tratamento. A escolha recairia sobre um daqueles médicos consultados, ou alguém que viesse a ser recomendado por eles.
Eu voltaria então a esses médicos com um propósito distinto do anterior: divulgando o término do tratamento com o Dr. Gerência, declarando a busca de uma nova solução, e informando detalhadamente o estágio do problema após aquelas seis últimas cirurgias. Para tanto, revisei o texto do Histórico do Tratamento Clínico/Cirúrgico, onde registrara todos os eventos do meu caso médico, e disponibilizei toda a documentação a respeito. Por último, imaginando a possibilidade do difícil entendimento de algumas seqüelas absolutamente singulares, não acusadas por nenhum dos exames, e de fácil entendimento somente para aqueles que já as tivessem sentido – pouquíssimas pessoas, assim espero –, me ocorreu uma linguagem figurada para facilitar a comunicação naqueles contatos.
O caso mais significativo dessa dificuldade dizia respeito a uma enorme sensação de pressão em toda a minha face direita, partindo do seio maxilar e abrangendo a bochecha, a narina, o lábio superior e o olho, pressão essa que evoluíra gradativamente ao longo do tempo. Para ela me ocorreu a seguinte alegoria: Imagine que um hábil cirurgião plástico faça uma pequena incisão no centro da sua face direita, e retire um bom pedaço do osso logo abaixo. Em seguida – continue imaginando – ele introduz um elefante naquele espaço aberto na sua face, de uma forma lenta, gradual e muito perseverante – pelos motivos óbvios –, procedendo então à sutura daquela incisão na sua face. Imagine agora a pressão que você passaria a sentir após esse procedimento. É a sensação que me ocorre depois de todas essas cirurgias – intensa e permanentemente. O que varia é o tamanho do elefante, ora parecendo um indiano, ora um africano – este último, bem maior.
Todo esse cuidadoso preparo para a exposição do caso tinha como propósito facilitar o entendimento por parte dos consultados, minimizando a possibilidade de uma percepção distorcida por fundamentada em informações indevidas.
Quanto aos referenciais que seriam adotados para a construção daquela percepção, não me ocorreu imaginar outras questões que não as relacionadas à prática médica, variando segundo o grau de formação e experiência do consultado. Eu viria a ficar surpreendido ao constatar, naqueles referenciais, uma participação desmedida de alguns traços obscuros que habitam os humanos – o que, afinal, também são os médicos.
Quem Pariu Matheus que o Embale
Ocorreu-me consultar o Dr. Hipócrates, com quem eu estivera naquela fase que culminou com a escolha do Dr. Gerência.
Ele me recebeu com um comportamento muito reservado, pondo-se a ouvir atentamente a minha exposição, com evidente interesse a respeito dos detalhes dos problemas ocorridos. Encerrada a minha fala, e após a avaliação meticulosa da documentação que eu havia levado, comentou que aquela consulta anterior lhe havia trazido conseqüências muito desagradáveis, e relatou porque. Começou recordando que eu havia chegado a ele pela indicação de um amigo em comum. Esse amigo viria a criticá-lo após informado a respeito da minha opção pelo Dr. Gerência, tendo inclusive dito: “Também, você fica aí de conversa, e aí ele vai lá e fecha com aquele cara de ...... Fica parecendo que nós aqui no Rio não sabemos tratar do problema dele”. Concluindo, após dizer que se recusava a tratar do meu caso em função do ocorrido, Dr. Hipócrates sentenciou: “Quem pariu Matheus que o embale”.
Aquele médico com semblante senhorial, anteriormente tão atencioso, agora revelava um outro lado. Pelo conteúdo – por se permitir um comportamento como aquele –, e pela forma – por se permitir aquele tipo de frase sentenciosa em uma conversa com um paciente.
Cheguei a admitir então a possibilidade de uma competição bairrista no meio médico. É como se o time do Rio reagisse a um gol do adversário.
Essa possibilidade me pareceu confirmada mais adiante quando voltei a ouvir a mesma frase sentenciosa, desta vez daquele médico a quem eu havia recorrido para certificar o diagnóstico da última recidiva do tumor (Provocando o Incêndio / A Escolha), um colega do Dr. Hipócrates naquela entidade modelo da oncologia. Eu contara com o seu atendimento localizado e esporádico durante o tratamento com o Dr. Gerência, com o consentimento deste, no sentido de evitar algumas viagens. Em todas essas ocasiões fui recebido com muita atenção, principalmente com relação aos problemas decorrentes dos erros médicos então cometidos. Porém, na primeira vez que o procurei já nessa fase de contatos em busca do novo médico, e tendo ficado claro que aquele era tão somente mais um atendimento localizado, voltei a me defrontar com a tal frase.
É como se o time do Rio reagisse pela perda de um gol.
Ao Corporativo, Tudo
Ao Paciente, o Matheus no Mesmo Embalo
Daquele universo de médicos agora consultados surgiu a indicação do Dr. Corporação, também ligado àquela mesma entidade modelo da oncologia onde trabalhavam os dois médicos aversos ao Matheus, e também renomado como eles.
Em seu consultório, após o ouvir meu relato e examinar rapidamente todo o material disponibilizado sobre o caso, o Dr. Corporação fez uma longa explanação a respeito. Começou citando as qualificações do Dr. Gerência, o que lhe fora permitido atestar nos freqüentes contatos que eles mantinham. Em seguida discorreu sobre a propriedade dos procedimentos operados, deixando claro que os problemas ocorridos não denotavam qualquer possibilidade de erro. Concluiu então com a recomendação de que eu continuasse o tratamento com o Dr. Gerência.
Mais para o final da explanação do Dr. Corporação, já sabendo onde ele iria chegar, o distanciamento daquela cena me permitiu a consciência de que, até aquele momento, eu não me dedicara a acusações e a exposição dos culpados. Convivendo há muito com aquele quadro determinado por um buraco na boca, eu não me permitira a dispersão, mantendo todo o foco da atenção e do esforço direcionado para a solução. O problema, suas causas e seus efeitos eram permanentemente tratados tão somente naquele sentido.
Mas agora, ante aquele discurso do Dr. Corporação, me via impelido a falar de culpas. Eu já ouvira a opinião de diversos médicos a respeito das causas dos problemas, o que naturalmente explicitava os erros cometidos. Algumas opiniões colocadas de uma forma velada, outras mais explícitas, mas em nenhuma situação eu me defrontara com uma parcialidade tão radical. Negando todas as provas, e contrariando todos os seus outros colegas – inclusive o próprio Dr. Gerência, que admitira a gravidade do parafuso incendiário e se omitira posteriormente daquele caso de insucesso –, o Dr. Corporação estava mesmo era defendendo algum interesse, que certamente não era o meu.
Argumentei então a respeito de erros e de culpas, com detalhes e com veemência. Tanta, que o silêncio que se seguiu à minha conclusão delatou o quão alto chegara a minha voz. Me estendi um pouco mais, pedindo desculpas pelo volume da voz, desculpando a parcialidade desmedida daquela opinião que me fora colocada, e recomendando que ele não contasse com a perda do discernimento do paciente quando em situações críticas.
Uma Nova Tentativa
Ocorreu-me também voltar ao Dr. Interação, com quem já estivera em duas consultas, a primeira das quais quando aberta a fístula por conta do parafuso incendiário. Recordando, naquela ocasião ouvi dele que seria impróprio realizar qualquer cirurgia a curto prazo, o que acabou ocorrendo pela maior segurança que então me foi passada pelo Dr. Gerência – com conseqüências lamentáveis, como vimos. A propriedade daquela opinião justificara inclusive uma segunda consulta, durante aquele esforço concentrado das últimas quatro cirurgias com a equipe do Dr. Gerência.
Naquelas duas consultas o Dr. Interação demonstrara não só a sua vasta experiência, como também uma certa dificuldade de sintonia com o meu problema. Afinal, em ambas as ocasiões ele dedicara um tempo substancial promovendo os seus conhecimentos a respeito da oncologia, renegando o que fora colocado pelo Dr. Hipócrates ao referenciá-lo como parceiro de grande competência na reconstrução facial. Porém, eu estava mesmo era com um grave problema de reconstrução, assunto que merecia maior atenção que o tumor excisado de uma forma severa em tempo tão recente.
Perseverei, no entanto. Voltei ao Dr. Interação observando que o meu foco continuava direcionado para a funcionalidade, utilizando os termos usados por um médico que definira três focos de atenção no meu tratamento, voltados para as questões oncológicas, estéticas e funcionais. Reforçando, comentei que com aquele buraco na boca, que limitava a alimentação e me emparedava num quadro infeccioso permanente, eu não funcionava para efeito da vida normal.
Após se informar detalhadamente a respeito do estágio do problema, o Dr. Interação recriminou veementemente o tratamento que fora feito, citando explicitamente: “Tudo o que eles fizeram está absolutamente errado”. Em seguida, colocou a sua proposta para um tratamento que implicaria quatro procedimentos, sendo os três primeiros bastante complexos, voltados para a recomposição estética. A sutura da fístula seria feita por último, com o tecido da própria região, podendo ser antecipada caso o tecido se mostrasse recuperado para tanto. Mais ainda, ao longo do tratamento seria dada atenção à efetiva erradicação do tumor.
Exceção feita a um dos procedimentos, a respeito do qual Dr. Interação havia publicado um livro cujo conteúdo me foi exibido em detalhes, os demais procedimentos foram explicados muito sinteticamente. Perguntado sobre o motivo da síntese, ele explicitou a sua posição mencionando que: “Deve-se ir falando aos pouquinhos, na hora certa”.
Fiquei de pensar a respeito da proposta e discordei de que tudo o que fora feito antes estava totalmente errado. Argumentei que a excisão do tumor, até aquele momento não se enquadrava naquela avaliação, citando inclusive a opinião unânime dos demais médicos consultados. Não fui convincente, pois aquela avaliação radical foi mantida.
Em resumo, eu que chegara àquela consulta com somente uma dúvida – o que fazer para fechar a fístula –, seria induzido a algumas outras: a possibilidade de uma excisão incompleta; a continuidade da exposição do meu organismo a complexas cirurgias antes do fechamento da fístula; a propriedade da avaliação de que tudo estivera errado anteriormente – talvez mais uma decorrência da competição bairrista no meio médico.
Achei melhor adotar a certeza da impropriedade dessa avaliação, pelo que me desfiz das demais dúvidas.
Enfim, a Técnica para Apagar o Incêndio
Da conversa com um amigo a respeito do jogo que se desenrolava, com uniformes limpos e jogadas nem tanto, veio a idéia de consultar um médico fora do Brasil, aumentando as chances de uma avaliação descompromissada com aquela competição bairrista.
Assim, em julho de 2002 eu estava de volta àquele hospital em Paris, constatando algumas mudanças ocorridas desde a última consulta realizada há quatro anos e meio. Por conta dos avanços na integração da comunidade européia, o atendimento gratuito havia sido estendido aos cidadãos dos demais países do bloco. Já para os estrangeiros – no caso, os cidadãos de países não pertencentes à comunidade –, havia ocorrido um pequeno aumento nos preços cobrados, uma decorrência da implementação do Euro, que implicara aumentos de uma maneira geral na França. Uma outra mudança dizia respeito à ausência do Dr. Humanidade, já então aposentado, o que me levou a ser atendido pelo seu substituto.
Após minucioso exame, utilizando os vastos recursos disponíveis na sua sala, esse médico francês colocou o seu diagnóstico em uma linguagem direta, tendo de início observado: “Não fossem essas placas e os procedimentos para consertar os problemas criados por elas, você já estaria bom há muito tempo”. Em seguida fez as suas recomendações para o fechamento da fístula, para o conserto dos demais danos causados pelas placas e parafusos, e para a reconstituição estética. Quanto ao tumor, não havia nenhuma evidência de permanência ou recidiva do problema, mas era impossível assegurar a eliminação definitiva do mesmo. Seria necessário acompanhamento periódico.
Coloquei então as minhas dúvidas, quando voltamos a falar detalhadamente a respeito das recomendações, particularmente quanto à técnica para o fechamento da fístula, ainda não aventada por nenhum médico no Brasil. Ela partia do pressuposto que o sucesso da sutura estava condicionado ao uso de um tecido não comprometido pela radioterapia, para o que era recomendado, preferencialmente, a rotação de um retalho de tecido da mucosa inferior – mais especificamente da gengiva logo abaixo dos dentes inferiores –, uma região fora do foco da radioterapia.
É essa a solução, pensei. Assegura o fechamento da fístula, por utilizar um tecido são, ao contrário do que repetidas vezes fizera o Dr. Prática. E mais, dispensa os complexos procedimentos do implante microcirúrgico, por utilizar retalho local. Como senão, deduzi pelas experiências anteriores, haveria um penoso pós-cirúrgico, pois a rotação do retalho não se resume a um corta e sutura, implicando complexo deslocamento que deixa um resíduo do tecido para irrigação sanguínea provisória do retalho, enquanto não se criam novas conexões na região em que veio a ser suturado. E isto tudo seria feito em uma distância razoável, e dentro da boca, já tantas vezes submetida a procedimentos cirúrgicos, razões pelas quais eu temia aquele pós-cirúrgico.
Perguntado a respeito daquele senão, e da propriedade das razões que me levavam a temê-lo, o médico francês mais uma vez foi direto: “O senhor tem toda razão, mas essa é a melhor opção em termos cirúrgicos. E vai beneficiá-lo depois do sofrimento”. Depois se estendeu sobre as propriedades dos argumentos, e concluiu reforçando a opção recomendada.
Valera a pena. Antes de tudo, eu agora tinha uma técnica para apagar o incêndio. Mais ainda, estava melhor informado a respeito.
No entanto, continuava faltando o bombeiro. A opção de realizar a cirurgia em Paris se tornara inviável, uma vez que implicaria recursos financeiros então indisponíveis. Não pela despesa com a cirurgia em si, que como já vimos é substancialmente menor que no Brasil, mesmo considerando que aqui as despesas hospitalares ficariam por conta do plano de saúde. A inviabilidade se estabelecia pelo depósito em caução exigido pelo hospital, e pelas despesas de estadia em um longo pós-cirúrgico, com toda uma infra-estrutura de suporte.
Encerrando um Longo Capítulo
No último dia de julho de 2002, eu estava reunido com o Dr. Gerência para as formalidades de encerramento.
Iniciei reforçando que estava longe o término do tratamento, embora já decorridos quinze meses do seu início, em absoluto contraste com os prazos iniciais por ele previstos – Dez dias para o meu retorno às atividades profissionais; Trinta dias para exercícios físicos; Sessenta dias para plena recomposição da aparência.
Observei em seguida que não obstante os motivos já tivessem sido comentados ao longo de todo o tratamento, eu gostaria de rememorá-los, até pela minha preocupação que viessem a se repetir com outros pacientes. Relembrei então todos os erros cometidos durante o tratamento, assinalando ao final que todos os problemas que me acometiam haviam decorrido de erros, não ocorrendo nenhuma situação relacionada a causas naturais, como por exemplo, um problema médico não acusado nos exames realizados, ou uma reação negativa do meu organismo a medicamentos e procedimentos cirúrgicos, ou ainda, uma recidiva do tumor.
Durante o meu relato, o Dr. Gerência fez algumas intervenções, mantendo aquela atitude de distanciamento das reais causas dos problemas já manifestada durante o tratamento. Nessas ocasiões voltou a se manifestar de uma forma não muito clara, como era usual quando tratávamos sobre problemas, sendo exceção quando observou que os pacientes tendiam ao inconformismo perante as naturais perdas de qualidade de vida por conta de cirurgias do câncer. Em resposta, reforcei estar comprovado que os problemas aos quais eu me referia decorriam de erros cometidos. Em nenhum momento eu havia levantado qualquer questionamento a respeito de seqüelas naturais, como por exemplo: Perda da sensibilidade em parte do lábio por conta da excisão do nervo infra-orbitário, o que afinal estava se recompondo por caminhos alternativos gerados naturalmente; Alteração estética em uma região submetida a uma ampla excisão de tumor; Perda da saliva e ressecamento da mucosa provocados pela radioterapia, o que acabou não ocorrendo.
Por último, solicitei cópia das fichas operatórias de todas as cirurgias realizadas, e ainda, que aquela nossa conversa fosse transmitida detalhadamente para o Dr. Prática, pela minha preocupação que os erros cometidos se repetissem com outros pacientes, e pela responsabilidade dele – Dr. Gerência – como chefe da equipe.
No dia seguinte, estive no Hospital por conta da documentação das cirurgias, ocasião em que o Dr. Prática veio a perguntar sobre a minha posição a respeito do tratamento. Respondi que tinha conversado longamente com o Dr. Gerência e que este ficara de lhe comentar em detalhes a respeito. Mesmo assim fiz um resumo da minha posição, tendo ouvido dele a pergunta sobre qual a técnica que seria utilizada para fechamento da fístula. Respondi omitindo aquela solução inovadora colocada pelo médico francês, como já o fizera com o Dr. Gerência.
Foram conversas educadas, mas eu viria a entender que essa minha omissão denotara ressentimento por tudo o ocorrido.
Uma Referência se Reafirma
Restava agora a escolha do bombeiro, para o que me ocorreu o Dr. Referência (Alimentando o Fogo / Ouvindo Outras Opiniões). Pela ótima impressão que a sua prática médica havia me causado, eu estivera com ele em algumas ocasiões, sempre com ótimos resultados pelas opiniões ponderadas e pelo nível de informação que me era colocado. Somente não havíamos evoluído em relação à cirurgia porque se fazia necessário um tempo maior para a recomposição do tecido da região e do organismo como um todo, e ainda, porque eu ansiava por uma técnica cirúrgica nova – o que afinal surgira.
Procurei o Dr. Referência com uma razoável expectativa quanto à sua reação perante uma recomendação não alinhada com a sua. Após ouvir o meu relato sobre o ocorrido em Paris, ele leu o relatório elaborado pelo médico francês, e em seguida se posicionou favoravelmente, recomendando a adoção da técnica cirúrgica proposta. Recomendou ainda o Dr. Emblema, um médico já com alguma experiência naquela linha de trabalho, tendo em seguida feito algumas tentativas de contato pelo telefone com o médico, deixando recado para o retorno da ligação.
Saí dali com o telefone do recomendado e com a disponibilização do Dr. Referência para quando necessário. Mas saí também impressionado com a sua atitude. Não obstante o renome e a posição por ele alcançados no meio médico, não perdera um segundo defendendo ou justificando a sua proposta. Reconhecera de imediato a propriedade da proposta do médico francês, focando tão somente as conveniências do paciente, com base tão somente em critérios médicos. Sem desperdício de tempo, e consciente que as circunstâncias não comportavam qualquer experimentação na prática da técnica recomendada, dedicou-se então para disponibilizar um médico com experiência a respeito e que poderia dar seqüência ao tratamento de forma independente.
Adicionalmente, ganhara uma referência da prática médica. Estava demonstrado inclusive que uma prática voltada para o atendimento do paciente, em nada compromete as recompensas de um profissional da medicina – mesmo no Brasil.
Dr. Jekyll prevalecera sobre Mr. Hyde, e eu ganhara uma referência para todo o restante do tratamento – eu gostaria de contar com a opinião do Dr. Referência doravante.
Apagando o incêndio – Cirurgias 12 e 13
Preliminares
Recomendado como especialista em microcirurgia reconstrutiva o Dr. Emblema também se dedicava a cirurgias estéticas, acumulando suas atividades privadas com a direção do Departamento de Microcirurgia de um hospital público. Como estratégia de divulgação do seu nome ele investia em cirurgias inovadoras, chegando inclusive a render nota em coluna social.
Na nossa primeira consulta, no final de agosto de 2002, iniciei declarando meu propósito que a próxima cirurgia se restringisse ao fechamento da fístula. O histórico do meu caso e as suas conseqüências – no organismo em geral e na região das cirurgias em particular –, justificavam esse propósito restrito. Complementei colocando a preocupação que o seio maxilar e a fossa nasal estivessem em condições impróprias, merecendo uma “faxina” geral antes do fechamento da fístula. A contínua exposição aos resíduos de alimento e água ingeridos nos últimos dezessete meses, em um ambiente com placas e parafusos afixados no osso, e as inúmeras infecções ocorridas, justificavam o procedimento.
Disponibilizei então a farta documentação sobre o caso, à qual fora acrescido o relatório gerado pelo médico francês, na versão original e na tradução para o português, tendo o Dr. Emblema optado pela original, argumentando que fizera diversos cursos na França. Após os exames de praxe, ele propôs que a cirurgia contemplasse inclusive os procedimentos de recomposição estética, uma vez que para “dar uma olhada aí dentro e ajeitar o necessário” – conforme suas palavras –, ele já teria de fazer uma incisão na borda do retalho anteriormente implantado por procedimento microcirúrgico. Seria então conveniente aproveitar para a reconstrução da asa e do soalho do nariz, a partir da rotação de um retalho de tecido da testa, e ainda, o rebaixamento do lábio direito, a partir da rotação de um retalho de tecido naso-geniano (do pescoço, logo abaixo do queixo).
Ao final da consulta, o Dr. Emblema recomendou que eu consultasse três outros médicos de sua confiança, que opinariam sobre as questões inerentes às suas especialidades. Voltaríamos a conversar após essas consultas, e até lá eu pensaria sobre a proposta de uma cirurgia mais ampla.
Iniciei as consultas pelo Dr. Oncologista, que também me havia sido recomendado em tempos recentes por uma amiga, um médico ligado àquela mesma entidade modelo de oncologia a que pertenciam diversos outros já consultados. Após minucioso exame da região e do material disponibilizado, ele concluiu que não havia com o que se preocupar, sugerindo apenas que todo e qualquer tecido excisado na cirurgia fosse submetido a exame.
Estive em seguida na clínica do otorrino recomendado, em consulta que também envolveu duas médicas assistentes para a realização de uma endoscopia nasal. Ao final o especialista observou que nada havia a acrescentar na cirurgia a ser realizada, mas que se faria necessário um acompanhamento permanente, para o qual se disponibilizou.
Finalmente, estive com o terceiro dos especialistas, um dentista com atuação voltada para recomposição em pacientes radiotratados. Também a este não ocorreu nenhuma recomendação para a cirurgia, tendo apenas ressaltado os severos danos que haviam sido causados aos dentes e à gengiva. Colocou então a proposta de um tratamento orçado por um valor absolutamente substancial.
Seguiu-se uma série de conversas e negociações, tendo em vista a minha relutância. Quanto à escolha do médico não havia alternativa senão o Dr. Emblema, único recomendado com alguma experiência anterior sobre a técnica sugerida pelo francês. A minha relutância residia em ampliar o propósito da cirurgia procedendo à recomposição estética naquele momento, não só pela complexidade dos procedimentos sugeridos como também pelo substancial aumento no preço da cirurgia.
Ocorreu-me então solicitar fotos que documentassem aqueles procedimentos em cirurgias anteriormente realizadas pelo Dr. Emblema, tendo sido apresentado somente um caso. Tratava-se de uma reconstrução de nariz cujo resultado não me pareceu satisfatório, tendo o médico justificado que a paciente desaparecera antes da conclusão do tratamento. Ainda assim, influenciado pelo “dar uma olhada aí dentro e ajeitar o necessário”, acabei concordando com a cirurgia ampliada.
Concluídas as conversas sobre o que fazer, tive o cuidado de editar uma lista com os procedimentos a serem atendidos pela cirurgia, que veio a ser confirmada em leitura conjunta com o médico. Dentre outras, lá estavam relacionadas as minhas preocupações com: Irregularidades ósseas acusadas em exames de tomografia, particularmente os pontos onde haviam estado os parafusos; Lábio superior levantado em demasia; Recomposição do soalho e da asa do nariz, esta última contemplando inclusive o enxerto de tecido duro retirado da orelha, para evitar o contato da asa com a parede lateral da narina.
Finalmente, concluímos as negociações sobre o orçamento, o que também consumiu algum tempo. Não obstante eu tivesse solicitado o preço total do tratamento, a proposição inicial correspondia apenas à primeira das cirurgias que se fariam necessárias, conforme deduzi ante as evidências de pelo menos mais uma, não citada pelo médico. Lembrei então a minha solicitação do preço total, contemplando todos e quaisquer procedimentos previstos no tratamento. Um novo orçamento veio então a ser apresentado, sendo aprovado após combinado o pagamento em três parcelas, pelo que foram acrescidos juros às duas últimas com vencimentos em trinta e sessenta dias.
Cirurgia Doze – Procedimentos e Pós-Cirúrgico
Cinco meses após a última das cinco frustradas tentativas de fechamento da fístula, eu estava de volta a um centro cirúrgico com o mesmo propósito.
O Relatório Médico-Cirúrgico elaborado pelo Dr. Emblema documenta:
“Diagnóstico: fístula oro-maxilo-nasal + perda de substância no lábio superior + perda de substância na asa nasal.
Cirurgia realizada: reparação de fístula oro-maxilo-nasal com rotação de retalho da mucosa oral + reconstrução da asa do nariz com retalho ilhado supra-troclear da região frontal + reconstrução do lábio superior com retalho naso-geniano.
Local: .........
Data: 03 de outubro de 2002
Duração da cirurgia: 5 horas
Códigos AMB: 54.09.008-3; 54.02.003-4; 54.02.004-2”
Já o laudo do exame histopatológico realizado documenta:
“MACROSCOPIA: Fragmento de pele pardo-claro com 2,5X1,7X0,3 cm, elástica, mostrando superfície irregular.
CONCLUSÃO: Elastose solar dérmica. Ausência de neoplasia no fragmento biopsiado.
MACROSCOPIA: Fragmento de mucosa pardo-acizentada com 0,6X0,4X0,3 cm, elástica, mostrando superfície lisa.
CONCLUSÃO: Elastose solar dérmica. Ausência de malignidade.
MACROSCOPIA: Elipse de pele pardo-clara com 2,5X0,7X0,2 cm, elástica, mostrando superfície lisa.
CONCLUSÃO: Elastose solar dérmica. Ausência de neoplasia no fragmento biopsiado.
O Histórico do Tratamento Clínico/Cirúrgico documenta:
“Fechamento das fístulas (2) com rotação de retalho da mucosa inferior
Rotação de retalho da testa para reconstrução da asa do nariz
Rotação de retalho do pescoço para rebaixamento do lábio
Os dois retalhos (testa e pescoço) foram suturados no retalho anteriormente transplantado do braço.”
Dito de outra forma, a cirurgia implicara dois momentos bem distintos e independentes. No primeiro, operado no âmbito interno com acesso pela boca, fora aplicada a técnica sugerida pelo médico francês para o fechamento de duas fístulas – uma delas de dimensão bem maior –, revelando que os danos decorrentes das cirurgias anteriores tinham sido ainda maiores.
Em um segundo momento, operado tão somente no âmbito externo – sem qualquer acesso para permitir “dar uma olhada aí dentro e ajeitar o necessário”, como dito pelo médico –, foram operados os procedimentos voltados para a estética.
A asa da narina direita foi reconstruída a partir de tecido do lado esquerdo da testa, deslocado de uma região escavada a partir do couro cabeludo, com uma profundidade aproximada de 1,0 centímetro e uma superfície de forma elíptica de dimensões aproximadas de 6,5 X 1,5 centímetros, ficando essa dimensão maior em uma posição oblíqua em relação à testa e terminando um pouco antes da ponta interna da sobrancelha esquerda. O deslocamento desse retalho de tecido deixara um resíduo ligado àquela região escavada – o pedículo –, que devidamente arrumado ficara com a aparência de um cordão umbilical de aproximadamente 6,0 centímetros de comprimento, assegurando a irrigação sanguínea do retalho enquanto o processo de cicatrização estabelecia uma nova vascularização na região em que veio a ser suturado. Esse pedículo saia da parte mais inferior da região escavada e chegava até a parte mais superior da asa do nariz reconstruída, ficando repousado sobre o rosto e passando na parte superior do nariz, justo no ponto de apoio dos óculos, o que veio a exigir uma razoável criatividade para o uso deste sem exercer pressão sobre aquele cordão umbilical, e também para a higiene do rosto.
Não só o retalho utilizado na reconstrução do nariz, como também o utilizado para o rebaixamento do lábio, foram suturados naquele implantado por procedimento microcirúrgico quando da reconstrução durante a cirurgia seis. No final, esse retalho original tinha aproximadamente dois terços do seu perímetro ocupado pelas suturas com os seus dois novos vizinhos.
Após aquela cirurgia de cinco horas com tantas rotações de tecidos, se seguiu um período de grande incômodo. Nas primeiras vinte quatro horas, estive permanentemente deitado, praticamente imóvel e sem elevação da cabeça, no sentido de facilitar a irrigação sanguínea da asa do nariz reconstruída através do pedículo. Depois fui readquirindo paulatinamente os meus direitos de mobilidade, até que na manhã do terceiro dia da internação eu estava de alta do hospital.
Mas na tarde desse mesmo dia, um sábado, eu estaria sendo atendido em emergência pelo Dr. Emblema, no seu consultório. É que a minha filha observara o retalho da asa do nariz muito escuro e com baixa temperatura, denotando um processo de necrose. Falara com o médico pelo telefone e procedera a algumas massagens como recomendado, mas ante o insucesso dessa medida acabou por acertar o atendimento. Nele, o Dr. Emblema veio a liberar alguns pontos na região mais crítica – justo na dobra da asa que levava ao soalho do nariz –, tendo ainda procedido a uma demorada massagem no sentido de estimular a circulação. Após um momento crítico em que o Dr. Emblema chegou a admitir retornar o retalho para o seu lugar original na testa, uma reversão do quadro acabou por manter a reconstituição, com o sacrifício da dobra da asa e do soalho do nariz, cujos tecidos foram absolutamente consumidos pelo problema.
Nesse ínterim, o retalho utilizado para o rebaixamento do lábio veio também a acusar um processo de necrose, embora menos agudo. Recebidos os devidos cuidados veio a se restabelecer após substancial redução do seu tamanho, fazendo com que o lábio voltasse a ficar levantado.
Em ambas as situações, os riscos de necrose haviam decorrido das suturas dos dois novos retalhos naquele original implantado por procedimento microcirúrgico.
A solução desses problemas implicaria um total de oito atendimentos em um período de vinte e cinco dias, ao longo dos quais reiteradas vezes o Dr. Emblema fez comentários muito elogiosos quanto à ação do meu organismo no processo de cicatrização. Esses comentários diziam respeito à reversão dos problemas ocorridos, à retirada de pontos antes dos prazos normalmente praticados, e ainda, à rápida cicatrização na região escavada na testa, que ficara aberta pela impossibilidade de sutura e estava sendo recomposta de forma espontânea – criação de um novo tecido gerado de baixo para cima.
O único senão veio a ser colocado no penúltimo dos atendimentos quando me fiz acompanhar de uma amiga, uma jovem senhora de muito bela aparência e com interesse nas técnicas cirúrgicas voltadas para a estética. Em um determinado momento, em pauta as causas de eventuais problemas de cicatrização, veio à tona os malefícios decorrentes do fumo e o meu consumo diário de dois cigarros diários. O Dr. Emblema então se demonstrou surpreso:
– Ah! Então temos um cigarrinho aí?
– Falamos sobre isso já na primeira consulta – respondi, complementando: – E os seus elogios sobre a minha cicatrização têm sido constantes.
Um Mal-Feitor Inocente (neste caso)
Não lembro com precisão, mas um tanto antes dos dezoito anos eu insistia para entrar no rol dos fumantes, mesmo ante as sensações desagradáveis provocadas por aquele hábito propagado por associação ao sucesso e ao bem estar – até mesmo saudável, como então sugerido pela imagem do cowboy fumando o Marlboro. Mas afinal consegui, não obstante a pouca tolerância do meu organismo ao hábito. Impossível respirar a fumaça produzida pela queima daquele papel com tanta química, e a própria fumaça do fumo só era tolerada pelo nariz quando de saída – cheirar fumaça dos outros, nem pensar. Pela garganta, a rejeição se pronunciava através de um leve pigarro sempre que excedido um limite de uns oito cigarros por dia.
De início, o cigarro era um ótimo companheiro nos momentos de tensão, que naqueles tempos eram muitos. Bem mais tarde, já dispensável como instrumento de descarga emocional, o cigarro deveria ter ficado sem função o que não ocorreu porque então o danado já tinha se colocado nos momentos prazerosos, permanecendo companheiro. Menos mal que permanecera também a tal pouca tolerância do organismo, estabelecendo limites.
Todo aquele investimento em me tornar fumante se fez à época acompanhar de um outro, sendo este absolutamente aceito pelo organismo. É que eu descobrira afinidade com a prática do vôlei, não só por algumas habilidades que me permitiam uma boa prática, como também pelo exercício da interação que é própria do esporte coletivo. Após frustradas tentativas em outros esportes, eu investiria em uma prazerosa e contínua prática esportiva, à qual posteriormente se juntaram a corrida e o tênis – um esporte individual que implica utilíssimo exercício de autocontrole.
E fui então pela vida despreocupado, fumando pouco e praticando esporte muito.
Até que por volta dos trinta anos, vim a observar um senhor com sérias dificuldades de respiração, quando compartilhamos um elevador somente com a pessoa que o acompanhava e o ascensorista. Este, após ajudar na saída daquele senhor que também tinha dificuldades de locomoção, constatou o meu espanto e comentou a respeito. De tudo o dito, o que ficou mesmo foi: “Isso é de cigarro”. Eu tomara conhecimento do enfisema pulmonar, um problema irreversível diretamente relacionado ao fumo, que acabava com qualquer possibilidade de prática esportiva.
Logo em seguida eu estaria fazendo um teste de capacidade pulmonar, que não acusou problemas, mas também não eliminou as minhas preocupações com o futuro. Segundo o médico que me assistiu no exame, o cigarro é causa de múltiplos problemas, mas especificamente quanto à preocupação que me levara ao exame – enfisema pulmonar –, muito provavelmente a inexistência de qualquer indício estaria associada a uma confluência de fatores. Explicou ele que boa parte das substâncias contidas no cigarro acabavam depositadas nos alvéolos do fumante, e que por um processo cumulativo este depósito encharcava os alvéolos, comprometendo a elasticidade que permite a admissão e a expulsão do ar respirado. No meu caso tudo indicava que a pouca quantidade de cigarros consumida, a prática contínua de exercícios aeróbicos – que solicitam mais da elasticidade dos alvéolos, pela respiração mais forte –, e também a constituição dos tecidos do meu organismo estavam mantendo um equilíbrio. Porém, como fumante, ao longo do tempo eu assumia um risco evitável.
Também quanto aos outros diversos males do cigarro, exames clínicos e radiológicos realizados nada acusaram, repetindo-se obviamente o risco ao longo do tempo.
Consciente da armadilha em que havia caído, e da dificuldade de sair dela, adotei algumas medidas. Incorporei uma piteira importada, que passou a reter substancial parte da química do cigarro – com a função adicional de explicitar o quanto de sujeira vai parar no pulmão do fumante. Mais ainda, estabeleci uma “ração” diária de quatro cigarros, a porção necessária para manter as necessidades do irracional que se dedicava àquele hábito.
E foi assim que cheguei ao início da epopéia de que trata este livro.
Desde então, algumas poucas mudanças: a ração diária se reduziu a dois cigarros; a fumaça nunca mais veio a sair pelo nariz, somente pela boca; a companhia do cigarro voltou a ser também um instrumento de descarga emocional.
Ocorreram descontinuidades nesse hábito restrito, associadas às cirurgias realizadas. Mas somente uma vez ocorreu uma tentativa de parar, uma experiência voltada a constatar se o “elefante” que causa a pressão na região das cirurgias estaria associado ao cigarro. A tentativa se encerrou dois meses depois, com o “elefante” do mesmo tamanho e o cigarro como companheiro na descarga emocional.
Mas os inúmeros exames realizados ao longo de todo o tratamento, e também todas as recuperações nos pós-cirúrgicos, não indicaram quaisquer problemas no organismo, muito menos decorrentes do cigarro. Mais ainda, todos os médicos envolvidos jamais relacionaram quaisquer dos problemas ocorridos ao cigarro. Nenhum deles recomendou o fumo, mas a maioria substancial admitiu a ração diária dos dois cigarros – pela descarga emocional e pela não constatação de qualquer mal.
O próprio basocelular, o tipo de câncer do meu caso, não tem nenhuma relação com o fumo. Em suma, tenho dado muita sorte, ao contrário do ator que representava o cowboy do Marlboro, morto por um câncer no pulmão – não sem antes se propor à exposição para divulgar os efeitos do cigarro.
Por fim, estou me empenhando para sanar os problemas aqui tratados, hoje causas dessas descargas emocionais onde o cigarro ainda se impõe, e aí então tentar dispensar a sua companhia.
Cirurgia Treze – Procedimentos e Pós-Cirúrgico
Em 25 de novembro de 2002 eu estaria de volta a um centro cirúrgico, para a retirada do pedículo que permanecera além das previsões iniciais do Dr. Emblema, e para o acabamento da asa do nariz reconstruída. Os ganhos ficaram tão somente por conta do retorno à normalidade na higiene do rosto e no uso dos óculos, uma vez que não foi possível qualquer reparo nas perdas na dobra da asa e no soalho do nariz, provocadas pelos problemas ocorridos na cirurgia anterior.
Seguiram-se três consultas de revisão da cirurgia, na última das quais comentei que o “elefante” havia crescido, pois a pressão na região estava mais intensa. Por recomendação do Dr. Emblema voltei ao otorrino de sua confiança para um exame de endoscopia nasal, realizado em meados de dezembro de 2002, cujo laudo documentou: “Observa-se pequena fístula maxilo-nasal em meato inferior, sem secreção”. Perguntado a respeito, o especialista demonstrou preocupação, comentando inclusive que a convivência com aquela fístula seria o ideal, pois dispensaria uma intervenção para o seu fechamento. Recomendou então um acompanhamento através de consultas e exames periódicos em sua clínica, tendo ainda prescrito lavagens nasais com soro fisiológico para eliminar secreção.
O laudo da endoscopia e as recomendações do especialista viriam a ser aprovados pelo Dr. Emblema em consulta de encerramento do tratamento. Nessa ocasião, aproveitei para reforçar as diversas reclamações já colocadas durante o tratamento, tendo sido surpreendido. Concluiu ele, com relação aos procedimentos de recomposição estética, que: “Considerados os custos e as perdas havidas, o investimento não valeu a pena”.
Já de alta, estive com o Dr. Referência. Após me examinar, ele colocou algumas recomendações, entre as quais a de que estava na hora de tratar a brida cicatricial que resultara da técnica recomendada pelo médico francês. A brida cicatricial era uma decorrência natural e perfeitamente previsível daquele tipo de rotação de retalho, correspondendo ao retesamento do tecido que durante algum tempo ficara como canal de irrigação sanguínea do retalho utilizado no fechamento da fístula. Para distender aquele tecido utilizava-se uma técnica cirúrgica simples – a zetaplastia.
Voltei então ao Dr. Emblema com aquela recomendação, pelo que recebi um novo orçamento. Contestei, relembrando: o orçamento que eu aprovara contemplava todos os procedimentos previsíveis, e a zetaplastia assim se caracterizava. Após um bom tempo de discussão eu viria a ser surpreendido pela alternativa proposta pelo Dr. Emblema: ele faria a zetaplastia naquele hospital público em que dirigia o Departamento de Microcirurgia, de imediato e sem qualquer ônus para mim. Dito de outra forma, ele não teria um preço a cobrar, mas também não teria custo, por utilizar toda a infra-estrutura do hospital. Concluiu argumentando que aquela solução já havia sido adotada para um outro paciente que também estava com problemas financeiros.
Contestei novamente, afinal eu estava discutindo o cumprimento do que havia sido combinado com ele, o que significava aquele procedimento previsível incluído no valor de aproximadamente vinte mil reais, já cobrado. Argumentei ainda que a solução proposta era imprópria, pelo que voltamos a discutir o assunto, sem qualquer resultado. A zetaplastia, por não urgente, ficaria pendente.
Cirurgias Doze e Treze – Percepções e Constatações
O sucesso no fechamento das fístulas atestara a propriedade da técnica recomendada pelo médico francês, principalmente pelo grave quadro provocado pelas cinco frustradas tentativas anteriores, todas elas utilizando a equivocada técnica de rotação de retalhos com tecidos também afetados pela radioterapia.
Quanto à atuação do Dr. Emblema, muito me fora dado a perceber.
Nos nossos contatos iniciais, eu ficara com uma expectativa muito favorável pelo trabalho daquela equipe multidisciplinar, montada informalmente com os especialistas recomendados. Mas os resultados viriam a ser frustrantes, exceção feita ao Dr. Oncologista, que confirmaria as referências favoráveis de uma amiga antes da indicação do Dr. Emblema, passando a acompanhar o meu caso doravante.
O dentista, recomendado pela sua especialidade na recomposição de pacientes radiotratados, praticamente se ateve à proposição de um caríssimo tratamento dentário, com orçamento equivalente ao proposto pelo Dr. Emblema para as suas cirurgias. Não lhe ocorreu dar relevância aos traumas na maxila, nem qualquer recomendação ao Dr. Emblema quanto ao “dar uma olhada aí dentro e ajeitar o necessário”.
Também ao otorrino não ocorreu nenhuma recomendação, cometendo o grave erro de desconsiderar os problemas críticos decorrentes das cirurgias anteriores, facilmente constatáveis no exame de endoscopia nasal realizado. Exemplificando, antes da primeira cirurgia do Dr. Emblema ele não dera relevância à falta de uma comunicação do seio maxilar com a fossa nasal, o que veio a implicar represamento da secreção produzida no seio maxilar quando fechadas as fístulas que permitiam o escoamento pela boca. Tanto, que logo depois eu viria a acusar ao Dr. Emblema que o “elefante” havia crescido.
Porém, ainda assim, o especialista repetiria o equívoco em novo exame de endoscopia cujo laudo documenta detalhadamente tudo o observado, restringindo-se no caso da comunicação em questão a: “Observa-se pequena fístula maxilo-nasal em meato inferior, sem secreções”. Não constatando nenhuma outra comunicação, e sabedor que as cirurgias anteriores haviam comprometido a anatomia original da região e todos os recursos naturais para escoamento da secreção, era uma obrigação elementar do otorrino fazer as recomendações cabíveis ao Dr. Emblema. Não fez, e ainda mais, exagerou no erro ao ter me recomendado um acompanhamento periódico da pequena fístula então constatada, no sentido de monitorar uma possível e indesejada expansão – segundo a sua absolutamente equivocada avaliação.
À época, ainda ignorante a respeito dos requisitos de comunicação em questão, nada me transpareceu de errado. Mais adiante, já mais informado, eu ficaria intrigado como o Dr. Emblema não tinha questionado aquela falha do seu especialista de confiança, por tão óbvia para um profissional da medicina e por constatável nas fitas de vídeo gravadas quando dos exames de endoscopia.
Em resumo, aquela equipe multidisciplinar em nada contribuira. Antes de tudo, pelo comprometimento da interação entre os profissionais, um traço comum a outras situações observadas durante o meu caso médico. Marcada pela informalidade, as equipes multidisciplinares interagiam pelo telefone ou quando de encontros durante cirurgias de outros pacientes, sempre em ocasiões que as cognições dos médicos estão voltadas para outros problemas, e sem a presença do paciente, o que permitiria sanar dúvidas e conflitos de opiniões. Essas limitações induzem ao comprometimento de diagnósticos e formulações de soluções mais próprias.
Mais ainda, aquela equipe do Dr. Emblema também se deixara marcar por uma abordagem predominantemente comercial.
Coerentemente, aquela abordagem também era adotada pelo Dr. Emblema, o que me ficou claro quando ele apresentou o orçamento inicial omitindo a retirada do pedículo. Não por esquecimento, pois eu acabara de solicitar um orçamento total, contemplando todos e quaisquer procedimentos previsíveis. Também não por dificuldade em prever o procedimento, afinal era evidente até mesmo para um leigo que aquele cordão umbilical não se desprenderia espontaneamente, e se o fizesse, o acabamento da asa do nariz reconstruída ficaria comprometida.
Perseverando, ele viria a reparar aquela omissão mantendo uma outra, a do reparo da brida cicatricial. Em suma, o Dr. Emblema deu todas as demonstrações de preferir trabalhar com orçamentos parciais – situação que tende a favorecer a prática de um valor total mais elevado –, ainda que contrariando o solicitado pelo paciente.
A minha percepção quanto ao Dr. Emblema viria ainda a ser reforçada quando da cirurgia quinze, mas os seus desvios de conduta na prática médica já o haviam colocado absolutamente inserido na cultura da trapaça, uma tendência que se estabelece em uma sociedade capitalista por excelência – o capital pelo capital – com implicações danosas para a sociedade, mais ainda em um país de instituições tão débeis como o nosso.
Impelido pelos seus interesses comerciais, ele se sentira à vontade ao colocar um falso argumento para ampliar o escopo da cirurgia – o “dar uma olhada aí dentro e ajeitar o necessário”. Conseguido o intento de um maior faturamento, ele renegaria aquele argumento, não procedendo como combinado. Não por esquecimento, uma vez que assim estava documentado na lista dos procedimentos da cirurgia aprovada após leitura conjunta, onde constava um outro procedimento importante que também não foi realizado. Este, dizia respeito ao enxerto de tecido duro quando da reconstrução da asa do nariz, evitando o contato desta com a parede lateral da narina – causa de problemas não resolvidos ainda hoje.
Em um outro momento, ante a presença da minha amiga que aparentava uma cliente em potencial, o Dr. Emblema se permitira a farsa de renegar não só o conhecimento prévio da minha ração diária de dois cigarros, como também os seus repetidos elogios à cicatrização no meu organismo, ao declarar: “Ah! Então temos um cigarrinho aí?” – uma evidente tentativa de desviar o foco das reais causas dos problemas então ocorridos, que decorriam da extrema ousadia dos procedimentos cirúrgicos por ele operados. Creio que ele havia se exposto a tanto não só pelo interesse comercial na possível cliente que se apresentava, mas também por considerar que aquela farsa passaria despercebida, contando com a esperada fragilidade de um paciente com um histórico como o meu.
Por último, me ocorre recapitular um desvio de conduta do Dr. Emblema que ampliou a minha percepção das causas dos problemas da prática médica, motivando a primeira reflexão sobre o projeto deste livro.
Até o momento em que o Dr. Emblema propôs a utilização do hospital público para a cirurgia da brida cicatricial, diversas daquelas causas já haviam sido explicitadas ao longo do meu caso médico. De uma forma geral, decorriam das transformações ocorridas na própria prática médica, elevando em muito os requisitos para o seu sucesso, decorrendo ainda dos profissionais da medicina quando afetados pelas suas limitações cognitivas ou por excessos de alguns dos complexos traços que são próprios dos humanos – em particular a vaidade e a ambição –, traços estes que têm sido bastante instigados por uma sociedade voltada para o tal do mercado.
Permanecia, no entanto, a dúvida do que alimentava a intensidade e a freqüência dos problemas observados no meu caso. Não me ocorrera a justificativa do infortúnio, ou ainda, dos desígnios da Providência estabelecendo o caminho para a lapidação do meu espírito, não obstante a consciência dos ganhos na luta pela superação da adversidade. Daquela dúvida emergia a imagem de uma serpente de múltiplas cabeças que agiam por causas distintas, mas que tinham em comum o comprometimento da prática médica. Mas afinal, o que alimentava as ações tão intensas e freqüentes daquelas múltiplas cabeças sobre um paciente que mais tempo se colocava à disposição?
E então veio aquela proposta do Dr. Emblema revelando uma causa primária que estimulava todas as demais. Ao considerar a utilização de um hospital público como um recurso da administração do seu negócio privado – uma alternativa para a solução dos impasses provocados pela sua abordagem comercial da prática médica –, o Dr. Emblema dera uma clara demonstração de que se sentia à vontade para a utilização indevida da coisa pública. Não denotara qualquer constrangimento, desconsiderando não só o significado daquele ato, como também as suas conseqüências. Em beneficio dos seus interesses, confrontava os propósitos da administração da coisa pública, contando com a cumplicidade dos envolvidos, a passividade dos prejudicados, e ainda, com a impunidade.
Ocorreu-me então que, como todas as demais serpentes que comprometem as diversas práticas na nossa sociedade, também aquela que comprometia a prática médica estava sendo alimentada pelas nossas carências institucionais, assunto que votaremos a tratar adiante (O Cenário Brasil).
Vamos ao rescaldo – Cirurgias 14 a 21
O Tamanho da Encrenca – Primeiros Indícios
No início de 2003, debelado o incêndio, havia o que comemorar.
Primeiro pela alimentação, que voltara a ser um ato prazeroso. Não mais havia qualquer restrição quanto ao preparo do alimento, eliminando a imposição do líquido ou do pastoso. A mastigação também voltara à normalidade, e aquele longo período mastigando somente do lado esquerdo chegara ao fim. E mais, a higiene da boca se tornara menos trabalhosa e não mais se fazia obrigatória imediatamente após as refeições. Em suma, eu já podia voltar a um restaurante.
E ainda, eu comemorava a volta às prazerosas atividades esportivas. De início, longas caminhadas na areia da praia que se transformaram em rápidas, e depois em corridas. Paralelamente, a prática inédita de exercícios em academia para colocar os músculos em ordem – assim considerados quatro meses depois. Finalmente, a volta ao vôlei de praia com restrições quanto ao saque por cima e à cortada – uma decorrência do braço direito como doador de um grande retalho. Pelo mesmo motivo, a volta ao tênis ficara de fora, mas ainda assim eu comemorava, considerando inclusive que ao longo do tempo aquelas restrições estariam naturalmente resolvidas.
Mas permanecia pendente a solução de diversos problemas já identificados ao longo do tratamento, aí contemplados: a recomposição estética – que ficara comprometida; o desconforto com a pressão por conta do “elefante” – que após uma pequena trégua retornava em uma lenta evolução; a recomposição dos danos provocados nos dentes e na gengiva.
Atendendo às inconveniências determinadas pelos próprios problemas, a prioridade se deu para o desconforto com aquela pressão por conta do “elefante”. Consultado a respeito, o Dr. Oncologista afastou a hipótese de recidiva do tumor, tendo recomendado um exame de endoscopia nasal com o Dr. Otorrino, um otorrino que veio a diagnosticar o velamento do seio maxilar. A evolução da pressão se dava por conta de um processo cumulativo, e logo eu começaria a descobrir outros efeitos dessa secreção acumulada.
O primeiro deles se apresentou em fevereiro de 2003, quando senti uma súbita e intensa perda do equilíbrio logo após uma partida de vôlei. Estimulada pela atividade física e pelos movimentos da cabeça durante o jogo, a secreção se internara até chegar ao ósteo da tuba auditiva, e daí até o labirinto, chegando a tanto não só pelos obstáculos para o escoamento natural pelo nariz e pela garganta, como também pela mobilidade propiciada pela falta da parede anterior do seio maxilar.
Um tempo depois eu me defrontaria com uma situação de complexidade maior, logo após iniciar a travessia da ponte Rio-Niterói dirigindo um automóvel. Ante a amplidão descortinada à minha frente, sem referências de balizamento mais próximas, tive que fazer um esforço enorme para manter a direção dentro dos limites da faixa de rolamento. Como extensão do problema de equilíbrio sentido anteriormente, eu agora estava com restrições quanto ao dirigir.
Em continuidade, se estabeleceria um círculo vicioso, em que o próprio acúmulo da secreção passa a estimular a sua produção, implicando comprometimento de tratamentos clínicos. Eu estava com a cabeça encharcada e com organismo acusando um permanente quadro pré-infeccioso, implicando necessidade de uma intervenção cirúrgica.
Essa intervenção ficaria a cargo do Dr. Otorrino, que passara a acompanhar o meu caso a partir da indicação do Dr. Oncologista. Pelo que lhe fora dado a observar nas consultas realizadas desde então, ele resumiu: O quadro que eu apresentava decorria dos procedimentos da recomposição que se seguiu à retirada do tumor, quando o implante do retalho preencheu parcialmente o seio maxilar, sem que fossem providas as comunicações próprias para o escoamento da secreção que veio a se formar nos espaços não ocupados – teria sido até melhor que o retalho tivesse ocupado todo o seio maxilar; As cirurgias que se seguiram em nada haviam contribuído, pelo contrário, somente traumatizando aquela região constituída de tecido bastante sensível, implicando complexidade ainda maior no reparo dos problemas; A melhor oportunidade para esse reparo havia sido a cirurgia feita pelo Dr. Emblema.
Em função desse quadro, o Dr. Otorrino não via outra alternativa senão um cauteloso processo cirúrgico que implicaria inclusive a excisão de alguns dos componentes da fossa nasal, também comprometida. Dito de outra forma, seria necessário desconstruir um tanto do que a Natureza havia provido – em uma região de anatomia, composição e funcionamento absolutamente singulares.
Ocorreu-me então que os problemas já conhecidos asseguravam uma enorme encrenca, de solução a longo prazo. Debelado o incêndio, teria início um rescaldo de longa duração independente das surpresas que pudessem vir a ocorrer – e que efetivamente ocorreram.
O Processo (Inspirado em Franz Kafka) – VII
Àquela época, recebo uma intimação judicial para uma audiência de conciliação. Aquele imbróglio que se desenrolara ao longo do tempo no âmbito dos processos administrativos – do hospital onde o Dr. Gerência dirigia o departamento relacionado à sua especialidade, e do plano de saúde ao qual eu estava associado –, se transformara em um processo judicial, e mais uma vez se fazia presente em momento de grande tensão naquele interminável tratamento.
Por oportuno, me ocorre resumir as atuações anteriores dos envolvidos.
O hospital: Exigiu um cheque em caução quando da internação para a cirurgia seis, não obstante estivessem cumpridas todas as formalidades de autorização do plano de saúde – o que foi validado pelo próprio hospital no ato da internação; Mais adiante, me comunicou que as despesas hospitalares não haviam sido pagas pelo plano, e ameaçou descontar o cheque em caução; Instado a esclarecer as pendências do faturamento, para me ajudar na cobrança, disponibilizou informações que continham erros grosseiros.
O plano de saúde: Perguntado sobre a pendência, informou que estava tudo em andamento, não obstante problemas nas informações prestadas pelo hospital; Informou que somente as duas placas de titânio não estavam cobertas pelo meu contrato, ficando a meu encargo; Cobrado insistentemente no sentido de formalizar a efetivação do pagamento, documentou em correspondência que o havia feito para a sua coligada na mesma cidade do hospital, objetivando o repasse que efetivaria o pagamento – mas não explicitou que esse repasse havia sido feito, ou seja, não documentou que a sua obrigação havia sido cumprida.
Eu: Deixando claro que o problema não me dizia respeito, que estava em dia com as minhas obrigações, e reclamando da impropriedade daquele meu envolvimento em um complicado momento de convalescença, tentei ajudar; Ante a absoluta falta de consistência nas informações prestadas pelo hospital, reclamei junto ao setor responsável e informei o cancelamento do cheque em caução para não ser punido injustamente; Durante um período em que o hospital suspendeu o convênio com o plano de saúde, fiz uma cirurgia em um outro hospital com condições idênticas às do imbróglio, sem nenhum problema quanto ao pagamento; Posteriormente, por solicitação da equipe médica para evitar o seu deslocamento, voltei a utilizar o hospital do imbróglio pagando as despesas hospitalares enquanto o convênio continuou suspenso, e deixando de fazê-lo quando o convênio foi reativado; Voltei a intervir por conta de um outro imbróglio de mesma natureza, envolvendo aquelas mesmas entidades, que foi sanado; Ouvi do Dr. Gerência, que os problemas administrativos do hospital decorriam da falta de sintonia entre as diversas correntes políticas formadas pelos médicos-gestores.
Com esse histórico chegamos à audiência de conciliação, ou melhor, chegaram os advogados do hospital – o Autor do processo – e a da minha filha, acompanhada da própria. Esta última, como Ré no processo por emitente do cheque, pois inadvertidamente acompanhara o seu ousado pai quando este se dispôs para uma internação hospitalar sem portar talão de cheques, simplesmente acreditando na valia de uma autorização do plano de saúde, reconhecida pelo hospital.
Durante a audiência ficou claro que aquele não devia ser um bom dia para a juíza, considerando inclusive o seu péssimo humor e o tratamento dado à advogada da Ré, ao mandar que ficasse calada. Não viu nenhuma inconsistência nos argumentos do Autor do processo, e ao contrário, rebateu todos os apresentados pela defesa, indeferindo inclusive que o plano de saúde fosse arrolado no processo.
Ao final da audiência, somente a Ré ficaria respondendo por uma cobrança inconsistente – pelos erros cometidos pela parte autora –, cujo pagamento cabia ao plano de saúde – pelos compromissos assumidos: no meu contrato, no convênio com o hospital, e na autorização da internação formalizada na respectiva guia. E ainda assim, a juíza não admitira arrolar o plano de saúde no processo.
Como passo seguinte, ocorreu a fase de produção de provas documentais, quando o Autor se manteve coerente ao perseverar na inconsistência, cabendo comentar com algum detalhe o que é por ele citado na respectiva petição, no sentido de subsidiar a tese a que chegaremos em O Cenário Brasil.
Reportando-se ao objeto do processo: “... Nesse diapasão, é correto afirmar que o objeto da presente ação, é a cobrança da quantia correspondente a 01 (um) dia de internação na acomodação SEMI INTENSIVA, e não 02 (dois) dias, como de forma confusa alega a Ré em sua defesa.”
Por essa definição do objeto, um dia de internação na semi-intensiva custaria R$ 5.946,61, valor da cobrança citada na petição inicial do Autor. Porém, segundo FAX do extrato analítico das despesas da internação – encaminhado anteriormente pelo próprio hospital, e anexado ao processo –, o total de todas as despesas da internação corresponde àquele valor, sendo o valor de um dia de internação na semi-intensiva somente R$ 457,54.
Contestando a normalidade da minha relação com plano de saúde como associado, e a autorização da internação: “... Para se ter uma idéia, a Ré sequer possui contrato do contrato que firmou.”, e ainda, mais adiante: “...Conclui-se que a Ré já vinha enfrentando problemas com o seu convênio, inclusive à época em que seu pai foi internado na acomodação SEMI INTENSIVA. Pode-se concluir também, até por que não existe nos autos prova em contrário, que em momento algum o convênio médico havia autorizado os procedimentos objeto da presente demanda.”
Essas contestações simplesmente desconsideravam a guia de internação hospitalar anexada ao processo, cujo propósito era justamente documentar a autorização do plano de saúde, o que inclusive havia sido validado pelo hospital quando do ato da internação. Essa guia documentava também que eu estava associado através de um plano empresa, o que implica inexistência de um contrato individual. Ainda assim, foram anexados ao processo o contrato da empresa com o plano de saúde, e uma declaração documentando que não havia nenhum problema no meu vínculo com o contrato.
Acusando para reforçar a minha má fé: “... Ainda, é totalmente inconcebível, se uma pessoa que seja associada de um convênio médico, e que paga relativamente caro por isso, passe a custear voluntariamente, com recursos próprios, procedimentos médicos diversos para o seu tratamento. Pois foi justamente isso que ocorreu após a alta médica do paciente datada de 02/05/01. Em continuidade a seu tratamento médico, o paciente em referência retornou ao hospital mantido pela autora por diversas vezes e pagou com recursos próprios....”
Essa acusação desconsidera que realizei pagamentos durante o período em que o convênio do hospital com o plano de saúde esteve suspenso, e ainda, que após a reativação daquele convênio o tratamento voltou a ser pago pelo plano – o que já havia sido citado anteriormente pela advogada da Ré quando da contestação à petição inicial do Autor. Todos esses procedimentos são obrigatoriamente registrados pelos processos administrativos do hospital, porém somente os pagamentos que realizei durante a suspensão do convênio foram relacionados na produção de provas documentais do Autor – sem qualquer comentário a respeito daquela suspensão. Para efeito da defesa da Ré, foram anexados todos os documentos comprovando os meus procedimentos, inclusive a internação no hospital onde realizei a cirurgia sete – na mesma cidade do Autor da ação –, que foi paga pelo plano de saúde sem qualquer problema.
Postas as provas documentais e as contestações, o processo judicial foi em frente, e o tratamento também.
Desconstruindo a Natureza I – Cirurgia Quatorze
Procedimentos e Pós-Cirúrgico
Em meados de junho de 2003, após conviver pouco mais de oito meses com um seio maxilar velado e aquela pressão no rosto por conta do “elefante”, eu voltava a um centro cirúrgico para dar início aos trabalhos de desobstrução da região da encrenca. Desta vez teríamos uma cirurgia realizada por um otorrino – o Dr. Otorrino –, especialidade que tanto fizera falta nas anteriores, havendo ainda a novidade do pagamento dos honorários do médico por conta do plano de saúde. O hospital escolhido foi aquele onde o Dr. Otorrino dirigia o departamento relacionado à sua especialidade.
O Histórico do Tratamento Clínico/Cirúrgico, com base em informações do Dr. Otorrino, documenta:
“Aberta comunicação seio maxilar/fossa nasal, com a retirada da parte inferior da parede medial.
Retirada de partes do etmóide anterior, para liberação de secreção formada nas células etmoidais
Retirada da cabeça do corneto inferior, para melhor fluidez da secreção
Curetagem do seio maxilar”
Já o laudo do exame histopatológico realizado documenta:
“MATERIAL
1 – Septo nasal
2 – Etmóide direito
3 – Seio maxilar direito
4 – Corneto inferior direito
MACROSCOPIA
1 – Cinco fragmentos de tecido pardo-claro e firme medindo o maior 0,6 cm.
2 – Dois fragmentos de tecido pardo-claro e firme medindo o maior 1,0 X 0,5 cm.
3 – Fragmento de tecido pardo-claro e firme medindo 1,5 X 0,3 cm.
4 – Dois fragmentos de tecido pardo-claro e firme medindo o maior 0,6 cm.
RESULTADO
1 – Tecido ósseo cartilaginoso além de fragmentos de mucosa nasal sem atipias celulares
2 – Fragmentos de mucosa sinusal com hiperplasia das glândulas mucossecretoras, além de áreas de hemorragia recente.
3 – Sinusite crônica com áreas de fibrose e hiperplasia das glândulas mucossecretoras. Presença de fragmentos ósseos.
4 – Fragmentos de mucosa sinusal com áreas de hemorragia recente e freqüentes vasos sanguineos.”
Não obstante os incômodos esperados, consideradas as características da cirurgia, já nos primeiros dias senti uma substancial melhora. Toda aquela enorme pressão por conta do “elefante” se dissipava enquanto escoava pelo nariz todo o material represado, basicamente uma secreção dura e escura, em medidas tais que denotavam o longo tempo de retenção. Para tanto, bastava um assoar do nariz sem o enorme esforço antes necessário, sendo que em determinado momento chegou a sair uma fina camada de tecido, com uma amplitude razoável – pude puxá-la com os dedos para facilitar a saída. Pareceu-me com o aspecto de um epitélio, como se desprendido da camada de tecido criada como revestimento interno do retalho implantado quando da excisão do tumor.
O fato, porém, é que saiu um tanto equivalente ao tamanho do “elefante”, pois toda a pressão na região da encrenca desapareceu. Eu tinha a consciência de que continuava com muitos outros problemas, mas havia resgatado uma vida bem mais normal – dessas em que não se carrega um paquiderme no rosto.
Enquanto isso outro problema evoluía no meu braço direito, justo onde fora feita a tomada da veia para a administração de anestesia e medicamentos durante essa última cirurgia. Ele se apresentara logo após a saída da anestesia, quando senti uma dor naquele ponto, principalmente quando mexia o braço. Restabelecida a consciência plena, pude observar que a agulha utilizada para a tomada da veia estava afixada no braço por somente um esparadrapo, mal colocado tanto pela posição quanto pela pressão, implicando oscilação da agulha sempre que o braço era movimentado, o que provocava esgarçamento da veia.
Nos dias subseqüentes desenvolveu-se um processo inflamatório naquela região, que ao contrário do esperado não regrediu, vindo a se tornar muito inconveniente no nono dia após a cirurgia. Por ser um domingo, recorri ao pronto socorro do hospital onde realizara a cirurgia, tendo em vista a minha preocupação de possíveis decorrências no resultado da cirurgia recente. O médico de plantão diagnosticou uma flebite – infecção na veia –, tendo me despreocupado quanto a maiores conseqüências e recomendado antiinflamatório e aplicação de compressas de água morna. Esta última recomendação não ajudou, pois já na segunda aplicação ocorreu a queimadura do tecido fragilizado pela infecção, criando uma enorme bolha que veio a atingir um diâmetro de aproximadamente quatro centímetros e meio.
Dois dias depois eu estava no consultório do Dr. Otorrino, colocando o meu receio que aquele novo problema pudesse chegar de alguma forma até a encrenca do rosto. Após me tranqüilizar, pelo estágio ainda inicial da flebite, ele procedeu a uma punção, tendo jogado fora um tanto razoável de um líquido bastante denso, embora sem maior coloração – pelo que veio a dispensar a receita de antibiótico. Ainda na consulta, comentei o problema ocorrido pela má fixação da agulha na tomada da veia, tendo ele ficado de levar o assunto ao conhecimento do seu anestesista.
No contato posterior que mantive com este último, ele colocou que as suspeitas poderiam recair em uma reação ao que me fora administrado – drogas (Propofol, Remifentanil e Cisatracurio), e medicamentos (Cefazolina, Dexametazona, Cetropofeno, Ondansetron e Dipirona) –, ou ainda, em problemas no procedimento de tomada da veia. A primeira dessas hipóteses não deveria ser considerada, pelas substâncias e pela tolerância do meu organismo. Por outro lado, complementou o anestesista, a tomada havia sido feita por ele e ficara absolutamente normal, somente sendo possível qualquer problema no caso de posterior intervenção indevida da enfermagem. Reforcei a anormalidade que eu havia observado quando de volta ao quarto do hospital, e ficamos com esse mistério.
Desconstruindo a Natureza I – Cirurgia Quatorze
Percepções e Constatações
Eu continuaria feliz com a ausência do “elefante” por só um pouco mais. Após duas semanas de trégua a região voltou a ficar tensa e dolorida, tendo se iniciado um lento processo inflamatório que trazia de volta o paquiderme à região da encrenca.
Logo em seguida o Dr. Otorrino começaria a aspirar secreção que se acumulava em diversas regiões de difícil acesso, utilizando sondas mais finas que as comumente disponíveis no seu consultório. Mas agora não mais por conta do velamento do seio maxilar, pois o exame de endoscopia mostrava a permanência da comunicação com a fossa nasal aberta nessa última cirurgia. Essa permanência ficara assegurada por um instrumento utilizado pelos otorrinos – o splint –, uma pequena lâmina de formato circular, bastante delgada e maleável, produzida com um material próprio para as condições da cirurgia. Essas propriedades permitem que a lâmina seja enrolada e assuma a forma de um cilindro, sendo assim introduzida na comunicação recém aberta com o objetivo de evitar a obstrução pelo processo de cicatrização. Permanecendo durante os primeiros dias do pós-cirúrgico, o splint permite ainda a drenagem que evita o represamento do sangue e da secreção produzidos nesse período.
Constatando o sucesso desse instrumento, lembrei das inúmeras tentativas frustradas do Dr. Prática para gerar aquela comunicação, todas elas sem a utilização do splint. Eu tinha sido bastante prejudicado, o que não teria ocorrido se o Dr. Gerência tivesse reconhecido a importância da participação de um otorrino, ou pelo menos, que o Dr. Prática tivesse lido a respeito de um procedimento tão básico, já que se arrolara conhecedor da especialidade.
De resto, eu conviveria durante um bom tempo com a lenta regressão da flebite, até por não ter contado com a ajuda de qualquer medicação. Mas a intensidade dessa infecção foi de tal ordem que, não obstante as repetidas demonstrações de excelente cicatrização dadas pelo meu organismo, ficaram as marcas na região do meu braço, de uma forma irreversível.
Quanto às causas desse problema, somente um tempo depois seria confirmada a minha suspeita daquele procedimento da tomada da veia, o que vale adiantar aqui por oportuno. Quando da minha primeira internação hospitalar para administração intravenosa de antibióticos (Vamos ao Rescaldo / Um Sítio de Bactérias I – Mais e Mais Oportunistas Atacam), observei que a agulha então utilizada tinha um aspecto distinto daquela que me parecera causadora da flebite. Através de uma atenciosa enfermeira vim então a me esclarecer a respeito das duas opções de agulhas utilizadas na tomada de veia.
A primeira opção, o Jelco, é fabricada por um material plástico que responde melhor aos movimentos do braço do paciente, por flexível, evitando o esgarçamento da veia. Por esse motivo, é utilizado para efeito de administração de medicamentos e anestesia, procedimentos que demandam algum tempo. Já o Scalp, uma opção mais antiga, é fabricado por um material metálico que tende a esgarçar a veia quando do movimento do braço, por rígido, o que restringe o seu uso a situações de pouco tempo de duração. As formas dessas duas opções também se distinguem, sendo o Scalp facilmente reconhecido por uma “borboleta” situada na extremidade que não é introduzida na veia.
Pois bem, fora justamente o Scalp que esgarçara a minha veia e provocara a flebite. Em outras palavras, fora utilizada a agulha errada, afixada de idêntica forma.
Já as conseqüências da flebite não tardariam a se apresentar, como veremos adiante. Mas também por oportuno, me ocorre aqui comentar a opinião predominante entre os médicos ouvidos a respeito: Eu não passara por um risco maior, afinal o problema não evoluira para quadros graves que induzem à septicemia, porém, aquela infecção abrira uma porta altamente indesejável para o convívio do meu organismo com bactérias típicas de um ambiente hospitalar, que logo viriam a ser detectadas na região da encrenca.
Pequeno Procedimento, Grande Lição – Cirurgia Quinze
Convivendo com um quadro menos desfavorável, voltou à cena a zetaplastia pendente por conta da proposição do Dr. Emblema após a cirurgia treze, implicando utilização de hospital público para resolver um problema da sua prática médica voltada para interesses comerciais.
Ao longo do tempo eu havia revisto a minha posição contrária à realização daquela cirurgia, não obstante a sua impropriedade. Primeiro, pela opinião do Dr. Referência, que argumentava com a simplicidade da zetaplastia e com a conveniência de que ela fosse feita pelo Dr. Emblema, que detinha maior domínio a respeito da região tencionada pela sua cirurgia anterior.
Mas também o projeto da publicação deste livro induzira aquela minha revisão, pois com ele passei a cultivar a curiosidade de vivenciar a experiência. Claro, avaliando que a simplicidade apontada pelo Dr. Referência implicaria inexistência de riscos – uma avaliação da qual eu viria a me arrepender.
A experiência teve início com o meu registro naquele hospital público onde o Dr. Emblema dirigia o Departamento de Microcirurgia.
Em um outro dia procurei a assistente do Dr. Emblema, médica que respondia pelo Departamento na ausência dele, ocorrendo então um rápido cumprimento da burocracia, até a marcação da cirurgia em data de conveniência de todos. Um único senão ocorreu sem que eu presenciasse, quando o Dr. Emblema deu uma bronca em sua equipe por conta de um detalhe do meu atendimento. Desabafando comigo – um amigo do rei que poderia lhe dar algum amparo –, um dos membros da equipe comentou a sua estranheza, não só por conta da irrelevância do detalhe como também da veemência da bronca. Entendi aquilo como mais uma demonstração da cultura da trapaça a que se dedicava aquele rei – desta feita com o propósito de demonstrar rigoroso nível de exigência, desviando a atenção da improbidade em andamento –, e confortei a pessoa comentando que a bronca não teria conseqüências, se devendo apenas ao traço de soberba que habitava o Dr. Emblema, hipótese logo assentida com um leve sorriso.
Terminada aquela etapa, ficara claro que as coisas funcionavam para um credor do Dr. Emblema, mas não para o público, conforme pude observar circulando pelas dependências do hospital nos dias em que lá estive. Mas no dia da cirurgia essa distinção deixaria de existir.
Na terceira semana de julho de 2003, logo após um rápido cumprimento das formalidades de internação, viriam a ocorrer uma série de eventos naquele sentido.
Quando da minha entrada no centro cirúrgico desenrolava-se uma discussão sobre quem participaria da cirurgia, em uma linguagem e tom de voz bastante acalorados. Os argumentos passavam pela paralisação parcial por reivindicações não atendidas, pela desigualdade na distribuição de trabalhos, e até mesmo pela necessidade de sair mais cedo por outros compromissos. Nada tranqüilizador para quem se encontrava deitado numa maca à mercê daquele ambiente, principalmente porque o Dr. Emblema mudara a sua posição inicial a respeito da anestesia e optara pela geral. Já prestes a realizar uma retirada intempestiva, observei a aproximação de uma das presentes que veio a me confortar:
– Não se assuste, é assim mesmo.
– Você vai ficar durante a cirurgia – perguntei.
– Sim. Vai tudo correr bem.
Já era algo, e lembrando da simplicidade do procedimento dita pelo Dr. Referência, resolvi ficar.
O Relatório de Operação que consta do arquivo do hospital documenta:
1 – Paciente em decúbito dorsal, assepsia e anestesia, colocação dos campos cirúrgicos.
2 – Marcação de 02 “Z” ao longo da brida.
3 – Infiltração com solução padrão.
4 – Incisão e transposição de retalhos.
5 – Hemostasia venosa.
6 – Fechamento Catgut 4.0 e 5.0.
7 – Curativo.
O Histórico do Tratamento Clínico/Cirúrgico documenta: “Zetaplastia para liberar brida cicatricial gerada pela rotação do retalho da mucosa inferior, quando da cirurgia 12”.
A cirurgia não foi demorada, pois logo eu estaria em uma cama fora do centro cirúrgico, mais ou menos consciente. Pude trocar de roupa lentamente, mas logo em seguida estava sentado ao lado da cama e nela recostado, respondendo a estímulos mas sem iniciativa e até mesmo lucidez. Por exemplo, atendi a solicitação de estender o braço para uma coleta de sangue, mas só após um bom tempo me causou estranheza que a solicitante estivesse sem uniforme e sem luvas.
Quando a única enfermeira disponível se fez presente, esclareceu se tratar de uma instrumentadora que sofrera ferimento durante a cirurgia, e que a coleta fazia parte da rotina do hospital quando destes incidentes. Perguntei ainda, porque o soro não mais estava sendo administrado, tendo ela respondido que fora retirado logo após a saída do centro cirúrgico, atendendo a minha solicitação. Embora não lembrando achei possível ter solicitado, pelo meu inconsciente agindo por conta da flebite recente, mas estranhei o atendimento, pois em nenhuma das cirurgias anteriores o soro fora dispensado tão rapidamente. Sem mais dúvidas, fui informado que estava de alta, após o que a enfermeira voltou a desaparecer. Logo após eu sairia sem ter de quem me despedir, pois ninguém havia respondido aos meus chamados nesse sentido.
O pós-cirúrgico imediato veio a ser uma complicação grande, pois o meu intestino, absolutamente regular ao longo do tempo, se negava a funcionar. Subestimando a situação, até pela falta de referências, tentei resolver o problema somente com umas recomendações obtidas por telefone, o que veio a me causar enormes problemas na primeira vez, ocorrida no terceiro dia após a cirurgia. Eu tivera um fecaloma, o que se caracteriza pelo extremo ressecamento das fezes, implicando necessidade da ajuda de um proctologista para a sua retirada. O efeito das drogas administradas como anestésico durante a cirurgia veio a ser diagnosticado como uma das causas desse fecaloma – dado o seu efeito na motilidade intestinal –, tendo também contribuído de forma significativa a retirada precipitada do soro – logo após o término da cirurgia –, que tem as funções de manter o organismo hidratado e eliminar aquelas drogas.
Na segunda semana após a cirurgia, a região da encrenca – a do rosto – passou a apresentar coceira, ficando escura e com um aspecto de descamação. E na quarta semana constatei que estava com problema nos olhos, o que ocorreu de forma abrupta – ao sair à rua não consegui distinguir as pessoas a uma distância maior que três metros –, conseqüência de uma catarata precoce de origem medicamentosa. Segundo o oftalmologista então consultado, este tipo de catarata se forma na parte posterior do cristalino, em decorrência da administração de grandes doses de medicamentos, particularmente os corticóides. Um outro oftalmologista chegou a colocar que aquele tipo de catarata poderia ter outras duas causas complementares, que seriam o stress e a má alimentação. Ante tal explicação comentei que, para o meu caso, deveriam ser marcadas as três opções.
Em suma, essa última cirurgia me proporcionara uma lição prática – pequena, ainda bem –, sobre a falência do serviço público de saúde nos tempos atuais, em contraste com uma época em que aquele hospital era considerado como referência.
Recordei então o quanto aquele hospital me havia impressionado quando o visitei no início dos anos sessenta, acompanhando um familiar médico que lá trabalhava. Não obstante a falta de referências para uma avaliação própria, por muito jovem, eu ficara impressionado com o que vi – a grandiosidade e limpeza das suas instalações; a diversidade de equipamentos; o zelo dos funcionários e a limpeza dos seus uniformes –, e com o que ouvi – neste caso, mais pelo entusiasmo dos diversos elogios que lhe foram dirigidos pelo médico.
Um Sítio de Bactérias – I
Mais e Mais Oportunistas Atacam
No início de setembro de 2003, aproximadamente seis semanas após a última cirurgia, o aspecto da região da encrenca denotava mais problemas, pois os retalhos lá implantados estavam inflamados e com celulite. Após examinar a região e ouvir o meu relato recapitulando os problemas ocorridos, o Dr. Emblema suspeitou de infecção hospitalar e ficou preocupado com os retalhos, recomendando banho com Clorohex durante quatro dias, e antibióticoterapia durante dez dias.
Ao final desse período havia melhora, mas três dias após houve recaída com evolução gradativa, o que recomendou a cultura de secreção do seio maxilar. O resultado acusou duas bactérias – Staphylococcus aureus e Corynebacterium spp excluído C.diphteriae –, sendo considerado pelo Dr. Emblema como confirmação das suas suspeitas de um quadro grave. Comentou então que se fazia indispensável que eu procurasse um infectologista de sua confiança, para um tratamento severo.
Eu já não tinha confiança no Dr. Emblema, e suas indicações anteriores não haviam contribuído, porém, mais uma vez eu me via pressionado a fazer um tratamento de imediato, o que induziu a aceitação dessa última indicação. Procurei então o infectologista e repeti todo o ritual para envolvimento de um médico no caso. Apresentando-se como estudioso da bactéria Staphylococcus aureus, e concordando com a preocupação do Dr. Emblema a respeito, ele reforçou a necessidade de um tratamento bastante severo, tendo então me perguntado se eu gostaria de optar por uma internação hospitalar para tratamento clínico com aplicação intravenosa dos antibióticos, o que possibilitaria resultados mais eficazes.
Tratava-se de uma opção desagradável por implicar tomada da veia permanente, facilitando a contínua administração intravenosa dos diversos antibióticos com pequenos intervalos entre eles. Àquela altura do desenrolar da encrenca, eu ficaria em uma situação similar a um cachorro amarrado a um poste – com a vantagem de que o meu teria a vantagem de suportar os depósitos de soro e de medicamentos administrados, e teria rodinhas para facilitar o deslocamento até o banheiro. Pior ainda, eu começaria o tratamento sem saber a duração, a ser determinada pelos resultados dos exames realizados ao longo do tempo. E pior ainda mais, pelo preço cobrado por cada visita de acompanhamento diário do infectologista durante a internação – o dobro de uma consulta –, que teve uma pequena redução após as devidas negociações.
Acordado o tratamento a primeira das ações veio a ocorrer no início de outubro de 2003, com um procedimento operado pelo Dr. Otorrino em centro cirúrgico para drenagem da secreção retida, sendo o material submetido a uma nova cultura que confirmou a bactéria Staphylococcus aureus. Uma semana depois eu estava internado para a antibióticoterapia intravenosa, exercitando a paciência e observando redundância nos procedimentos das visitas diárias que me faziam o infectologista e o médico do hospital responsável pelo acompanhamento clínico dos pacientes internados.
Aquele tratamento viria a ser modificado no quarto dia, quando deixei o hospital por conta de um compromisso, como combinado previamente. A modificação se deu pelo somatório das dificuldades burocráticas no retorno à internação com o meu questionamento sobre a real necessidade daquela forma do tratamento. Mais uma vez o infectologista deixou por minha conta a opção da continuidade com a administração via oral de comprimidos, argumentando que os resultados alcançados já haviam justificado aquela internação.
A nova forma do tratamento teve início de imediato, com uma carga de antibióticos bem inferior à administrada via intravenosa, considerada pelo infectologista como aproximadamente doze vezes superior aos comprimidos receitados: Cipro 500mg – 12/12h; Dalacin C 300mg – 8/8 h; Keflex 500mg – 6/6 h.
Ante os estragos causados no meu organismo e a desconfiança que já me despertara o infectologista, no final de outubro consultei o Dr. Referência, com quem não tivera contato antes de iniciar esse tratamento. Ele começou caracterizando a retenção da secreção como a causa do problema, pois dela decorriam aquelas e outras bactérias que poderiam vir a se apresentar na região. Recomendou a desobstrução da região, solução que passaria pela continuidade do trabalho junto ao otorrino, em termos clínicos, cirúrgicos e de drenagem da secreção sempre que necessário. A presença da Staphylococcus aureus merecia um tratamento, mas ele avaliou que o receitado não fazia sentido por se tratar de uma sobrecarga que embutia uma redundância na atuação dos antibióticos. Avaliando também que os efeitos já teriam atingido o seu limite, e após um telefonema para consultar um especialista de sua confiança, recomendou a imediata suspensão do tratamento, o que foi feito.
Constatada a má prática médica daquele infectologista, comum ao Dr. Emblema e aos seus especialistas de confiança, me ocorreu estar repetindo um erro já cometido com o Dr. Gerência, ao insistir em recorrer ao Dr. Emblema pelo receio de dispensar os conhecimentos por ele incorporados ao operar um procedimento crítico. Esse receio me levava a renegar as evidências de que as más práticas acabam comprometendo os resultados.
Ocorreu-me ainda, ante a consciência do sítio de bactérias instalado na região da encrenca, recorrer à Dra. Infectologista, uma indicação da minha filha, que passou a acompanhar o meu caso doravante. Por oportuno, cabe antecipar aqui uma constatação que eu viria a fazer bem mais adiante, quando a internação para a cirurgia dezoito se estendeu por conta de uma outra antibioticoterapia com aplicação intravenosa. Neste caso, a Dra. Infectologista nem mesmo aventou a possibilidade de me fazer visitas diárias para acompanhamento, o que somente se faria necessário em casos críticos. Dessa forma, a administração dos antibióticos foi feita com base em um relatório documentando o histórico do meu caso e a prescrição para o tratamento, gerado pela Dra. Infectologista em consulta que antecedeu a internação. O tratamento teve o acompanhamento diário da médica do hospital responsável pelo acompanhamento clínico dos pacientes internados, que consultou a Dra. Infectologista em somente uma ocasião, pelo telefone. Aquela nova internação me sairia por um preço melhor e um resultado muito mais ainda.
Vamos ao Projeto Livro
No início de dezembro de 2003 eu viria a resolver um outro dilema que transcorria em paralelo.
Submetido a tantos problemas médicos, já havia algum tempo que me ocorria a pergunta do que fazer com aquilo. Em resposta, se estabeleceu a idéia de um relato documentacional, acompanhado de uma provocação reflexiva sobre a relação de causas e efeitos dos problemas havidos. Seria um projeto alinhado com aquela minha batalha pela sobrevivência, com um belo desafio pela pretensão do chamamento à reflexão dos envolvidos com a prática médica, no sentido de evitar a repetição de erros. Estava germinando a idéia deste livro, o que me parecia impor um requisito, sob pena de comprometer o seu propósito e o seu conteúdo: a produção do texto não poderia se deixar marcar por qualquer resquício de lamento, reclamação ou rancor – essas coisas que podem acompanhar as adversidades que nos são impostas.
Passei então a conviver com um dilema em paralelo: como testar se havia chegado o momento próprio para dar início ao projeto do livro? E assim permaneci até o momento em que me veio à mente a demonstração de ressentimento que eu havia propiciado na última conversa com os Drs. Gerência e Prática, quando omiti a técnica para fechamento da fístula recomendada pelo médico francês. O teste que eu buscava se daria em um novo encontro com o Dr. Gerência.
E assim foi feito no início de dezembro de 2003, em uma longa conversa que se estendeu por quase três horas, quando coloquei um relato completo a respeito de todos os problemas ocorridos, das suas causas e das suas decorrências em termos físicos, emocionais, e financeiros, reforçando o já fora tratado anteriormente de forma segmentada. Os comentários do Dr. Gerência não apontaram inconsistências no meu relato, mesmo quando na tentativa de justificar determinados procedimentos, e somente um deles me pareceu importante, pelo seu caráter revelador. Esse comentário se deu após eu ter reforçado as falhas no planejamento e na gerência do tratamento, tendo então o Dr. Gerência sintetizado os seus problemas de parceria com cirurgiões plásticos, colocando: “Tive diversos problemas graves em experiências anteriores, e o Dr..... (Prática) tem se saído melhor que os demais”. Entendi ali, nas entrelinhas, não só a admissão dos erros cometidos como também o direcionamento dos mesmos para o Dr. Prática.
Já mais para o final, coloquei o meu objetivo a respeito daquele encontro, tendo em seguida comentado sobre o livro, observando que o seu propósito estava dissociado de qualquer espírito de cobrança. O tratamento deste assunto, continuei, não se faria próprio no livro e sim em ação judicial, o que afinal era a minha intenção quando eu estivesse recomposto financeiramente, considerados os custos relacionados – particularmente com a perícia judicial. Vim então a me surpreender com a atitude do Dr. Gerência, que em resposta comentou: “Pode entrar com a ação, pois não vejo maiores problemas na minha defesa. Eu mesmo me encarregarei dela, não sendo necessário um advogado”.
A minha surpresa ficou por conta da atitude que me pareceu transparecer daquele comentário. Ao longo do tempo eu havia percebido no Dr. Gerência um comportamento no qual as suas palavras traduziam diretamente os seus pensamentos, o que inclusive me parecera ter ocorrido pouco antes, quando do seu comentário sobre os problemas nas parcerias com os cirurgiões plásticos. Agora, quando tratada a questão da ação judicial, também me pareceu que ele realmente pensava o que foi dito. E assim sendo, ele assumira uma atitude que denotava descrédito na seriedade e nos efeitos de uma ação judicial, mesmo diante da farta documentação comprovando os erros cometidos.
Em condição distinta, eu me via novamente diante da certeza da impunidade, anteriormente já manifestada pelo Dr. Emblema. Distinta, porque desta vez a manifestação partira de um médico que não dera nenhuma demonstração de estar inserido na cultura da trapaça, como fizera aquele. Porém, ainda assim, o Dr. Gerência comungava com o Dr. Emblema a descrença na justiça, reforçando a evidência de que as nossas carências institucionais alimentam a má prática médica, justificando ainda mais as questões tratadas adiante em O Cenário Brasil.
Reconstruindo a Boca – Cirurgia Dezesseis
Em meados de novembro de 2003 uma cultura de secreção da fossa nasal veio a acusar duas novas bactérias, nenhuma delas impeditiva da continuidade do tratamento. Menos mal, pois se fazia urgente a solução de um dos diversos problemas que ao longo do tempo haviam se acumulado na boca.
Àquela altura havia mesmo era uma lista desses problemas. No lado da encrenca, eles estavam associados à perda óssea na maxila, retração gengival, rebaixamento do vestíbulo e perda de dente. Já no lado oposto, os problemas decorriam da sobrecarga durante o longo tempo em que a mastigação ali se concentrara, implicando severo desgaste nos dentes e na gengiva. Pela urgência de todos os demais problemas que então se apresentavam, e principalmente, pela possibilidade de que novos danos ainda seriam causados no âmbito da boca, o tratamento definitivo estava sendo postergado, cabendo tão somente os reparos provisórios em paralelo a tudo o que ocorria.
Nesse quadro, o destaque dizia respeito à plena exposição de uma das raízes do primeiro molar, um problema decorrente da retração óssea, acentuado quando aquele dente passou a apoiar uma prótese móvel provisória – única solução possível após a excisão feita pelo Dr. Prática quando da cirurgia dez. A urgência quanto àquela exposição se devia à preservação do dente, e mais ainda, à proximidade da raiz com a região das fístulas fechadas havia pouco mais de um ano, representando o risco de que elas viessem a abrir novamente.
Ante tal risco, a minha filha procedeu a um cuidadoso tratamento dos canais daquele primeiro molar, procedimento preliminar indispensável para a cirurgia que se seguiu no início de dezembro de 2003. Nesta, a minha filha e um seu colega especialista em pacientes radiotratados, procederam à excisão da raiz exposta e à recomposição da região com o enxerto de tecido retirado do palato. Decorridos alguns poucos dias de mais um cuidadoso pós-cirúrgico, vim a constatar com muita satisfação a possibilidade do pleno sucesso em uma recomposição do que eu fora um dia. Onde antes havia um quadro crítico com raiz exposta e buraco em volta, justo naquela região onde tantos problemas haviam se acumulado, agora eu via um dente revestido de uma gengiva de aparência saudável – tudo como antes.
O sucesso da cirurgia foi tal que logo em seguida se fez possível a substituição da prótese móvel por uma outra fixa, com caráter de provisório de longo prazo. Desta forma estaria assegurada uma mastigação normal até completados cinco anos do término da radioterapia – prazo estimado para o pleno restabelecimento dos tecidos da região tratada. Mas os ganhos foram absolutamente relevantes, pois após quase três anos da cirurgia que provocara o incêndio eu voltaria a fazer as refeições sem preocupações: antes, não mais precisava checar a consistência do alimento; durante, não mais controlaria que a mastigação ocorresse somente do lado oposto ao da encrenca; depois, poderia postergar a higiene da boca. Só então vim a me dar conta do longo tempo em que o alimentando fora tratado tão somente por conta da sobrevivência, e por esta eu havia renegado o prazer relacionado àquele.
Desconstruindo a Natureza II – Cirurgia Dezessete
Dos problemas na boca muito ainda havia a fazer, mas as coisas estavam bem melhores, ao contrário do que ocorria logo acima. Os procedimentos da cirurgia quatorze não haviam eliminado a retenção de secreção, o que continuava a incentivar a cultura de bactérias na região, e ainda, pelo acúmulo, voltara a provocar uma cabeça encharcada e a invadir o ósteo da tuba auditiva, desta feita me fazendo ouvir o eco das minhas próprias palavras. Menos mal que eu havia constatado a utilidade de pressionar o ouvido direito quando assoando o nariz – o que se fazia necessário com freqüência –, pois era uma forma de amenizar a chegada de secreção até a tuba auditiva quando daquele esforço. Tudo isso se fazia acompanhar da tal pressão exercida pelo “elefante”, resultando um quadro que veio a justificar uma segunda cirurgia para a desobstrução da região, realizada em meados de fevereiro de 2004.
O Histórico do Tratamento Clínico/Cirúrgico, com base em informações do médico responsável – o Dr. Otorrino –, documenta:
“Ampliação da comunicação seio maxilar/fossa nasal, com a retirada da parte média da parede medial (permaneceu a parte superior)
Retirada de partes do etmóide anterior, para liberação de secreção formada nas células etmoidais
Retirada do corpo do corneto inferior (permaneceu a cauda), para melhor fluidez da secreção
Curetagem do seio maxilar.”
Já o laudo do exame histopatológico realizado documenta:
“MATERIAL
1 – Maxilar direito
2 – Etmóide direito
MACROSCOPIA
1 – Vários fragmentos de tecido pardo-esbranquiçado, ora elástico, ora pétreo medindo o maior 1,5 X 0,8 cm.
2 – Segmento tecidual medindo 2,0 X 1,0 cm em pardo-claro e elástico com áreas pétreas.
RESULTADO
1 – Mucosa sinusal com discreto infiltrado linfoplasmocitário, edema e congestão vascular do córion.
2 – Mucosa sinusal com discreto infiltrado linfoplasmocitário, edema e congestão vascular no córion.”
Um Sítio de Bactérias – II
Mais e Mais Culturas e Tratamentos
A melhora observada após a última cirurgia não se manteve por muito tempo, e decorridos apenas dois meses o quadro de problemas anterior voltaria a se apresentar com a mesma dimensão, sítio de bactérias incluso.
Ocorria então um círculo vicioso, no qual as bactérias incentivavam uma maior produção de secreção, que uma vez retida passava a incentivar uma cultura diversificada de bactérias, e assim por diante. Algumas das bactérias eram próprias do ambiente hospitalar – pelas minhas diversas internações –, outras eram próprias do ambiente natural e convivem com um organismo saudável sem problemas, mas no meu caso, a presença de quaisquer daquelas bactérias na região fragilizada quanto às suas defesas naturais, implicava ônus. O organismo estava cansado pela batalha de tão longo prazo, mas ainda assim perseverava resistente, resultando um quadro de infecção crônica recorrente que veio a perenizar todos aqueles problemas com os quais eu já convivia em momentos alternados.
Seguiram-se então os diversos exames de cultura e tratamentos documentados no Histórico do Tratamento Clínico/Cirúrgico (Apêndice I). Pelas especificidades do caso e as conseqüentes dificuldades para o encaminhamento da solução, o tratamento foi orientado pela Dra. Infectologista segundo uma abordagem na qual a antibióticoterapia somente foi adotada em momentos mais críticos, e o suporte clínico ajudou o organismo a debelar as manifestações decorrentes do quadro.
Durante esse tratamento algumas sugestões alternativas apresentadas por outros médicos foram submetidas à avaliação da Dra. Infectologista e do Dr. Otorrino, tendo sido aplicadas quando não implicavam riscos, com a ajuda daquele último. Dessa forma, foram feitas aplicações com Rifocina – antibiótico tópico –, com solução de ácido acético em água destilada, e com ácido bórico em pó, mas em todos os casos os resultados foram superficiais e de curto prazo, não eliminando as causas do problema.
Ao se encerrar o ano de 2004, dois anos e nove meses após a primeira cirurgia com os Drs. Gerência e Prática, a alegoria do elefante não mais era suficiente para que os médicos imaginassem o que eu sentia na região da encrenca. O desconforto evoluira para uma sensação de pressão e dor que chegava a alcançar três níveis de intensidade, impondo um complemento naquela linguagem figurada.
Lembrando-me da famosa charge do Henfil onde o nordestino informa que ”só dói quando eu rio”, passei caracterizar três situações para informar aos médicos as variações do meu grau de desconforto: Só dói quando eu rio – a melhor das situações, de incidência mínima, na qual somente com o esforço dos músculos da mímica eu me via importunado; Só dói quando eu pisco – situação intermediária, de incidência média, na qual um esforço mínimo já era o suficiente; Só dói quando eu acordo – situação mais crítica, de maior incidência, que nada me exigia para um desconforto pleno.
Conversa de Congresso
Em conversa durante congresso da sua especialidade, o Dr. Otorrino ficara impressionado com o relato de um colega quanto à sua experiência em casos complexos como o meu, admitindo que aquela experiência poderia agregar importante contribuição para o tratamento. Mais adiante, ante o quadro que se apresentava no final de 2004, ele me sugeriu consultar o tal resolvedor de casos complexos, reforçando a expectativa de que a contribuição daquele médico justificaria o meu investimento em uma viagem até o seu consultório em São Paulo.
Concordei e tentei fazer contato por telefone. Não conseguindo, falei com a secretária citando a conversa com o Dr. Otorrino no congresso, coloquei a expectativa da consulta após resumir o meu caso, e solicitei que ela marcasse a consulta somente após confirmar aquela expectativa com o seu chefe. E assim foi feito.
A consulta veio a se iniciar com o meu detalhado relato, após o que reforcei a expectativa do Dr. Otorrino em função da conversa que eles haviam mantido no congresso. Fiquei então surpreso com a reação daquele autopropalador de experiência, que se voltando para médico que o acompanhava no consultório, comentou: “A gente fala cada coisa em congressos”. E depois, voltando-se para mim, complementou: “Em verdade eu sou um simples otorrino”.
Eu não tinha dúvidas quanto à capacidade de entendimento do Dr. Otorrino, que já demonstrara facilidades quanto ao diálogo e conhecia bastante as especificidades do meu caso, estando absolutamente habilitado a associar a experiência que lhe fora propalada no congresso com as exigências médicas do meu tratamento. Restava então concluir que estava diante de um profissional da autopromoção que se vira em situação incômoda perante aquele colega que acompanhava a consulta.
Recomendo hoje que diante de uma situação como essa o paciente levante e se despeça, poupando o seu tempo, paciência e o pagamento da consulta. À época, no entanto, mais uma vez aquiesci pressionado pelas condições desfavoráveis em que me encontrava, na esperança de qualquer contribuição. Em vão.
De volta, relatei o ocorrido a um constrangido Dr. Otorrino e divulguei que o seu colega ficara de telefonar para lhe colocar algumas sugestões, o que somente veio a ocorrer quatro semanas após, sem qualquer utilidade, em resposta a minha solicitação de que o valor pago fosse devolvido.
Esse episódio veio a reforçar a dificuldade do compartilhamento da experiência no meio médico, já explicitada repetidas vezes ao longo do meu tratamento.
Desta feita, já informado sobre médicos que realizam palestras favoráveis a determinados medicamentos omitindo o conflito de interesse pelo patrocínio da indústria farmacêutica, e consciente da tendência dos homens em privilegiar a divulgação dos casos de sucesso, me ocorreu admitir o comprometimento dos resultados dos congressos médicos para efeito daquele compartilhamento.
No entanto, muitos dos problemas com que me defrontei decorreram de procedimentos experimentais praticados por médicos desinformados, absolutamente evitáveis com o compartilhamento dos casos de insucesso na prática médica.
A propósito, me ocorre também admitir a utilidade de uma Base de Dados para a divulgação de causas e efeitos dos casos de insucesso, mantida pelas entidades de representação da classe, com acesso a todos os profissionais da área, resguardando o sigilo daqueles que contribuam com o registro dos casos.
No sentido de tornar essa Base de Dados ainda mais atrativa, o seu conteúdo poderia também contemplar as necessidades dos médicos quanto à atualidade sobre a evolução dos recursos inerentes a cada especialidade – equipamentos, materiais e medicamentos –, sendo registrados os resultados dos testes e as estatísticas de uso.
O Braço Apresenta a Fatura
Em paralelo aos tratamentos por conta do sítio de bactérias, o meu braço direito veio a acusar as seqüelas de dois maus procedimentos anteriores. Num primeiro, quando tomado como doador do grande retalho utilizado na recomposição do rosto durante a cirurgia seis – de grande inconveniência para uma pessoa destra. Mais adiante, quando um segundo mau procedimento durante a cirurgia quatorze provocou uma enorme flebite logo abaixo do cotovelo, já sobrecarregado com a substancial perda de tecido quando da doação.
Durante um bom tempo convivi com um braço ressentido, tendo o problema se agravado em junho de 2004 com uma dor aguda no cotovelo quando de qualquer esforço. Não me pareceu mera coincidência que à época eu estivesse envolto por aquele quadro de infecção crônica recorrente
Recorrendo à ortopedia, passei por um susto inicial. Os dois primeiros médicos consultados diagnosticaram que os problemas acusados em radiografia se deviam a artrose, processo de desgaste natural que pode se apresentar após os cinqüenta anos, e recomendaram que eu me adaptasse ao problema – isto, não obstante informados a respeito do meu histórico médico. Solicitei então uma radiografia do meu braço esquerdo, constatando plena normalidade, contestei o diagnóstico, e fui em frente.
Em nova tentativa, outro ortopedista veio a admitir seqüelas por conta dos problemas anteriores, recomendando fisioterapia para fortalecimento dos ligamentos e dos tendões do cotovelo direito. Esse tratamento, iniciado em trinta de junho de 2004 conforme documentado no Histórico do Tratamento Clínico/Cirúrgico (Apêndice I), teve duração aproximada de quatro meses, e apresentou resultados muito favoráveis que permitiram inclusive a tolerância ao impacto.
Uma Mensageira do Encanto
Envolto por um interminável tratamento e tomado por todos aqueles inconvenientes e impedimentos, eu perseverava e comemorava a sobrevivência. Graças inclusive, me pareceu então, aos recursos de defesa que a Natureza nos provê – que se apresentavam de diversas formas, entre as quais a negação e a seleção –, e aos quais eu recorria conscientemente ou não, no sentido de dosar as forças para o enfrentamento.
Relacionando aqueles meus últimos tempos com o ambiente do mar, era como se eu navegasse em um mar de tormenta, lutando pela sobrevivência perante uma interminável seqüência de ondas, com pequenos intervalos que mal davam para recobrar as forças. Nesse contexto, alguns cuidados se fazem indispensáveis: manter o rumo – perseverando no objetivo a alcançar; evitar outros danos que não aqueles provocados pela tempestade – facilitando a recomposição quando da volta aos bons tempos; dosar as forças – assegurando condições de luta até lá. Quanto a este último, um processo inconsciente de seleção se estabeleceu no meu caso, e nele o envolvimento amoroso não cabia.
Já antes da partida, ante os primeiros sinais da tempestade, me ocorrera navegar solitário, sendo injusto trazer para aqueles mares um relacionamento recente ainda não consolidado. Não foi fácil, pois se tratava de uma moça extremamente agradável, tanto que a separação veio a ser tratada com o bom gosto que a caracteriza, resultando profunda amizade. Solitário, fui então aos mares dantes nunca navegados para um embate de exigências plenas, onde o envolvimento amoroso permaneceu negado.
Já bem no meio da tempestade, tratando de um problema paralelo ao meu caso médico, vim a conhecer a Sra. Afrodite, uma moça que dedicava a sua atenção não só ao trabalho como também a um casamento funcionando – filhinha inclusive. Muitas coincidências e apelos comuns fomentaram um interesse que se traduzia em conversas agradáveis e duradouras, mas nada de tratar aquela aproximação com outros propósitos senão o de explorar as agradáveis conversas.
Em uma dessas explorações, dividíamos o banco traseiro de um táxi na volta de um almoço e conversávamos sobre a atratividade por ela exercida junto aos homens. Que era intensa, como já me fora dado a perceber e reafirmada naquele momento quando lhe dirigi o olhar e fui tomado pela sua estampa de beleza impar, retratada natural e involuntariamente por um sentar despretensioso. Seguiu-se um daqueles breves momentos que parecem se estender, renegando o passar do tempo pela intensidade das sensações agradáveis que comportam, no caso, pela contemplação daquela estampa que acrescentava ainda mais aos encantos já observados naquela moça. As formas, cores, expressões e elegância agora contempladas complementavam uma moldura já anteriormente colocada por demonstrações de sensibilidade, inteligência e habilidades de relacionamento.
Ainda antes de retomarmos a conversa, me lembrei do filósofo Espinosa, inspirador de Antônio Damásio nos seus estudos sobre emoções e sentimentos, publicados sob o título Em Busca de Espinoza: prazer e dor na ciência dos sentimentos. Segundo Espinosa: “O amor nada mais é do que um estado agradável, a alegria, acompanhado pela idéia de uma causa exterior” – uma citação reveladora para Antônio Damásio, ao separar com clareza o processo de sentir do processo de ter uma idéia sobre um objeto que pode causar uma emoção.
Por fim, ainda naquele retorno de almoço, me ocorreu uma distinção. As circunstâncias não me haviam colocado a Sra. Afrodite como objeto e sim como mensageira do amor, evitando o esquecimento do quanto de estado agradável pode emanar de uma causa exterior como aquela – um estímulo ao sentimento que eu voltaria a cultivar, de suma importância naquele momento tormentoso.
O Processo (Inspirado em Franz Kafka) – VIII
Em paralelo a todos os acontecimentos, mantinha-se o desenrolar do imbróglio por conta dos problemas nos processos administrativos do hospital onde o Dr. Gerência dirigia o Departamento relacionado à sua especialidade, e do plano de saúde ao qual eu estava associado.
No início de 2004 o processo judicial de cobrança das despesas hospitalares da cirurgia seis veio a ser julgado em primeira instância, após apresentada a documentação em que o plano de saúde comprovava o pagamento – obtida após muita insistência. A sentença julgou procedente o pleito do hospital, estabelecendo que eu deveria fazer o pagamento de um valor a ser fixado após uma conciliação entre os valores cobrados pelo hospital e os declarados pelo plano de saúde como pagos. Dito de outra forma, a justiça me mantinha responsável pela resolução de todo aquele imbróglio, não obstante todas as evidências – documentadas – que o problema em causa decorria das ações das demais partes, no mínimo por conta do descaso com os seus processos de trabalho. E mais, com a comprovação do pagamento feito pelo plano de saúde, estava absolutamente exposta a total inconsistência dos argumentos que fundamentavam a acusação do hospital. Ainda assim, a mim cabia o ônus pelos acertos de problemas decorrentes de processos administrativos, arcando inclusive com o ônus financeiro por conta dos custos processuais e dos honorários advocatícios.
Recorrendo às instâncias superiores – Tribunal de Justiça, e Superior Tribunal de Justiça – a minha advogada não teve sucesso, tendo sido mantida a sentença.
E finalmente, no final de 2005 o processo veio a ser arquivado, após retornar ao cartório da primeira instância para a execução, onde ficou durante um bom tempo sem qualquer manifestação da parte autora a respeito – o que implicaria participar da conciliação determinada na sentença, expondo a qualidade dos seus processos de trabalho e a inconsistência dos argumentos que haviam motivado a ação.
Durante mais de três anos, um judiciário desatento esteve disponibilizado para aquela ação com gratuidade das custas para a parte autora, por caracterizada como entidade filantrópica. Mas a autora também se caracterizava por graves problemas administrativos, evidenciados de forma clara nos autos do processo, uma decorrência da falta de sintonia entre as diversas correntes políticas formadas pelos médicos-gestores, segundo o Dr. Gerência.
O encaminhamento desse processo judicial me permite a percepção do desestímulo ao investimento em melhorias nos processos administrativos das entidades envolvidas, e até mesmo, do incentivo à má fé.
Desconstruindo a Natureza III – Cirurgia Dezoito
Em Paralelo: Bactérias no Osso e Mais Antibiótico
Após diversos tratamentos por conta do círculo vicioso que encerrava cultura de bactérias e produção de secreção, eu encerraria o ano de 2004 com um quadro bastante complicado.
Fez-se então necessário uma terceira cirurgia para a desobstrução da região, realizada em meados de janeiro de 2005.
O Histórico do Tratamento Clínico/Cirúrgico, com base em informações do médico responsável – o Dr. Otorrino –, documenta:
Ampliação plena da comunicação seio maxilar/fossa nasal, com a retirada da parte superior da parede medial
Retirada plena do corneto inferior, para melhor fluidez da secreção
Curetagem do seio maxilar
Já o laudo do exame histopatológico realizado documenta:
“MATERIAL
1 – Seio maxilar
MACROSCOPIA
Três fragmentos de tecido pardo-claro medindo o maior 1,0 X 0,7 cm.
RESULTADO
Fragmentos de mucosa sinusal com edema, processo inflamatório crônico inespecífico e hiperplasia de algumas glândulas.
Encontramos numerosos vasos sanguíneos, por vezes angiomatóides além de áreas de fibrose e hemorragia recente.
Ausência de neoplasia nos cortes examinados.
A internação dessa décima oitava cirurgia se prolongou por sete dias, para antibióticoterapia recomendada pela Dra. Infectologista em relatório entregue ao hospital quando da minha internação. Após historiar o meu caso, o relatório concluía: “A recomendação de antibióticoprofilaxia é de meropenem 1g EV na indução anestésica, a ser mantido terapeuticamente por mais 3 a 7 dias no hospital. Às ordens para quaisquer esclarecimentos, atenciosamente...”.
Em verdade o prazo estabelecido pela Dra. Infectologista era o de sete dias, devendo-se a variação documentada no relatório a um acordo que estabelecemos. Aterrorizado em experimentar novamente aquela sensação de “cachorro amarrado ao poste”, já vivenciada no tratamento com administração intravenosa de antibióticos, solicitei que fosse estabelecido o prazo mínimo possível, pois aquela sensação em um tempo maior poderia despertar a vontade de me jogar pela janela. A Dra. Infectologista comentou que sete dias era o recomendável, e chegamos a um acordo de colocar um mínimo de três, com o meu comprometimento de alcançar o recomendado. Mas pelo menos eu fiquei com a possibilidade de trocar a janela pela porta do hospital.
Esse acordo viria a provocar boas risadas quando do meu contato inicial com a médica clínica do hospital, responsável pelos pacientes internados. Ao lhe comentar sobre aquele acordo, observamos que o prazo de sete dias estava assegurado, pois embora eu estivesse internado em um quarto no segundo andar, o piso no ambiente externo à janela estava no mesmo plano do interno – a janela não resolveria uma situação de desespero.
Durante a internação prolongada eu estaria muito bem atendido por aquela médica clínica, cuja competência havia motivado um recente convite da indústria farmacêutica. Pouco tempo depois da minha alta, ela estaria trocando o hospital pela indústria, não só pelos atrativos da proposta de trabalho, como também pelo ganhos em temos salariais, até mesmo porque a remuneração no hospital era bem pequena.
Mas o bom atendimento não se estenderia à enfermagem, cujo atendimento se revelou muito ruim, tendo me exigido paciência, atenção e esforço em doses tais que acabou por gerar alguma tensão, mas teve o mérito de desviar a minha atenção dos incômodos de estar “amarrado a um poste”. Nos momentos de folga, quando não exigido pela enfermagem, passei a dar atenção às causas do mau atendimento e acabei por resgatar diversos outros problemas observados nas minhas internações anteriores. Todas as situações observadas haviam sinalizado uma causa comum: omissão ou insucesso no investimento dos processos de produção dos serviços e na capacitação dos fatores de produção relacionados – força de trabalho e sistema de informações em destaque.
A constatação daquela causa comum, a informação da predominância de médicos na direção do hospital onde eu estava internado, e a lembrança do comentário do Dr. Gerência logo após a cirurgia seis – relacionando os problemas administrativos então observados à gestão por profissionais da medicina –, me incentivaram a testar a abordagem dos médicos-gestores na gestão hospitalar. Passei então a dividir o meu tempo naquela internação, atendendo à administração de antibióticos, ao controle das ações da enfermagem e às anotações das observações e recomendações que me ocorriam a respeito.
Essas anotações vieram a ser debatidas com o responsável pela ouvidoria do hospital, que em seguida encaminhou à sua diretora o resumo documentado no Apêndice II. Com este encaminhamento eu testaria o relacionamento do hospital com a clientela, a atenção com reclamações e recomendações, as ações em melhorias no atendimento, e ainda, o interesse em explorar opiniões sobre técnicas e instrumentos de gestão que evidentemente não estavam sendo consideradas. Depois de onze meses sem qualquer retorno, entrei em contato com o responsável pela Ouvidoria e perguntei sobre o encaminhamento do assunto. Ele solicitou tempo para se informar a respeito, retornando posteriormente com a informação de que o resumo havia sido encaminhado para o órgão responsável pelo treinamento.
Após a alta daquela internação mais longa se seguiu um pós-cirúrgico bastante complicado. Não obstante a ótima cicatrização que se repetia, fixou-se um foco de problemas com espícula óssea na parede posterior do seio maxilar – o osso mais interno da região da encrenca –, justo onde fora retirada a parte superior da parede medial. Em outras palavras, quando daquela excisão alguns fragmentos ósseos na parede posterior haviam ficado expostos, impedindo o processo de cicatrização no local. O Dr. Otorrino procedeu então a retirada dos fragmentos com visualização por endoscopia e utilizando uma pinça especial, procedimento este que veio a ser operado repetidas vezes, todas em consultório, sem sucesso.
Enquanto isso o quadro se agravava com uma violenta infecção, inclusive com o retorno de numerosas colônias da bactéria Staphylococcus aureus, motivando a Dra. Infectologista a recomendar uma nova antibióticoterapia com administração de comprimidos via oral, pelas complicações do convívio daquela bactéria com o osso exposto. Esse tratamento teve início com prazo estimado de seis semanas, mas acabou sendo prorrogado em função dos sintomas de ostiomielite (infecção no osso), vindo a se encerrar após a cirurgia dezenove – a seguir –, com um prazo total de doze semanas.
Desconstruindo a Natureza IV – Cirurgia Dezenove
Em Paralelo: Mais e Mais Antibiótico
Com o organismo debilitado pela permanência daquele quadro com espícula óssea, infecção e antibióticoterapia, insisti na proposta de um outro procedimento mais amplo realizado em centro cirúrgico, o que veio a ser realizado em meados de março de 2005, após o insucesso da décima primeira tentativa com procedimento em consultório.
O Histórico do Tratamento Clínico/Cirúrgico, com base em informações do médico responsável – o Dr. Otorrino –, documenta:
“Desbridamento da parede posterior do seio maxilar, por conta de problemas com espícula óssea.”
Já o laudo do exame histopatológico realizado documenta:
“MATERIAL
1 – Seio maxilar direito
MACROSCOPIA
Vários fragmentos de tecido pardo-claro e pétreo, medindo o maior 0,5 cm.
RESULTADO
Mucosa sinusal com discreto infiltrado linfoplasmocitário, edema e presença de tecido ósseo.”
No sentido de poupar o organismo de mais uma carga de drogas anestésicas, e considerando a tolerância à dor que eu então tinha desenvolvido – no caso, amenizada em decorrência do seccionamento de comunicações nervosas da região –, essa última cirurgia veio a ser realizada sem qualquer indução anestésica. Desta forma, me foi possível observar a semelhança do procedimento operado com o trabalho de um escultor. Com a ajuda de sua equipe, e os instrumentos equivalentes a um martelo e uma talhadeira, o Dr. Otorrino trabalhou bastante para dar uma forma regular àquele osso danificado quando da cirurgia anterior.
O barulho e um tanto de dor incomodaram, mas os resultados foram compensadores, pois logo depois o processo de cicatrização se fez possível naquela região, complementando o trabalho com a ajuda da antibióticoterapia por conta dos sintomas de ostiomielite – o que se prolongou até o início de junho de 2005.
Um Sítio de Bactérias – III
Passando o Rodo
Após doze semanas de antibiótico, o quadro agudo refluira para o seu estágio anterior, inclusive com o sítio de bactérias onde a Pseudomonas aeruginosa mostrava permanência, agora em uma versão sensível a Ciprofloxacina. Esta sensibilidade veio a motivar um tratamento com uma solução otológica – Ciloxan Otológico (Ciprofloxacino 0,3%) –, na tentativa de interromper aquele círculo vicioso de cultura de bactérias e produção de secreção. O resultado foi desfavorável, não só pelas dores na mucosa que vieram a suspender o tratamento já no sexto dia, como também porque um exame de cultura veio a acusar que a bactéria havia se tornado resistente à Ciprofloxacina – as poucas aplicações naqueles seis dias haviam lhe fortalecido.
Seguiu-se um tratamento alérgico, também sem resultado, após o que uma sensação de que não havia alternativa a ser explorada. E ainda mais, os exames de cultura mostravam crescimento progressivo das colônias de bactérias – de algumas para numerosas, e depois abundantes –, tendo estas se alojado em posições estratégicas que permitiam, inclusive, que boa parte da secreção com bactérias escorresse continuamente pela garganta, com inconvenientes muito desagradáveis para o funcionamento do intestino.
E então me veio à mente a palavra chave na recomendação do Dr. Referência para aquele problema – “desobstrução” –, isto é, eliminada a retenção de secreção, a cultura das bactérias estaria comprometida. Faltava, pensei, testar a alternativa de desalojar as colônias copiando a técnica adotada por D. Zefa na limpeza da cozinha lá de casa – joga água e passa o rodo –, com adaptações, naturalmente, pois no caso o piso é de mucosa e extremamente sensível.
Recorrendo ao que me parecia mais próprio, e após a aprovação dos médicos envolvidos, em dezenove de agosto de 2005 iniciei o tratamento conforme documentado no Histórico do Tratamento Clínico/Cirúrgico (Apêndice I). A ingestão de aceltilcisteína tornava a secreção mais fluida, o Sorine estimulava a eliminação da secreção, mas em verdade o passar do rodo se dava mesmo era quando das muito freqüentes e intensas aplicações de soro fisiológico. Para que isso ocorresse, nada de aplicações com conta-gotas, pois aí não seria atingido todo o piso a ser lavado, e ainda mais, o soro acabaria chegando na tuba auditiva. A solução encontrada foi a aplicação do soro em spray, utilizando o frasco do Sorine H que se mostrou muito próprio para essa aplicação. De resto, aplicação farta e em diversas posições e ângulos, fazendo com que aquele “rodo em spray” desempenhasse muito bem o seu papel.
No primeiro exame de cultura que se seguiu, nada de resultado. Mas no segundo, sessenta dias após o início do tratamento, o resultado foi negativo – pela primeira vez desde o início de setembro de 2003, quando o sítio de bactérias se fizera notar.
Estava na hora de ir em frente.
Saindo da Penumbra – Cirurgias Vinte e Vinte e Um
A catarata de origem medicamentosa que se fizera notar em agosto de 2003, logo após a cirurgia quinze, evoluira e estabelecera mais limitações à visão, entre as quais a minha imersão em um mundo de penumbras e uma fotofobia severa – esta última pela reflexão da luz na camada medicamentosa, segundo o avaliado pelo oftalmologista.
Essas limitações foram relevadas durante um bom tempo por outras prioridades, até se tornarem inconvenientes a ponto de também impor a necessidade de solução. Nesse sentido, em janeiro de 2005 me foi indicado o Dr. Oftalmologista, que após algumas consultas de acompanhamento veio a ficar responsável pelas duas cirurgias – uma para cada olho –, que somente deveriam ser realizadas em momentos oportunos naquela luta contra o sítio de bactérias na região logo abaixo do globo ocular. Em junho de 2005 a primeira dessas cirurgias chegou a ser marcada, mas a prudência induziu ao seu cancelamento.
Agora, após o primeiro exame de cultura com resultado negativo, era chegado o momento próprio para a cirurgia no olho direito – o do lado da encrenca.
Aquela viria a ser a vigésima cirurgia do meu caso médico, e contemplando o crescimento deste número eu constatara um momento em que se esvaia o componente mental das minhas forças, mas reagira exercitando o uso e a permanência dessa força, e conseguira um razoável convívio com todo aquele vento contra.
Mas nessa vigésima eu me defrontaria com o medo, o que se fez notar visualmente uma semana antes da cirurgia quando observei uma manifestação de herpes no meu lábio, indicação de um momento de intensa carga emocional. Eu já tinha diversas cirurgias no histórico e outras tantas previstas, contemplando não só a região mais interna da encrenca, como também o rosto e a boca, mas estava mesmo era com medo do que pudesse vir a ocorrer ante o risco da expansão do sítio de bactérias para um órgão tão delicado como os olhos.
No final de outubro de 2005 a cirurgia foi realizada com administração de antibiótico na indução da anestesia (sedação), tendo o Dr. Oftalmologista documentado no relatório da cirurgia:
“Acompanhamos o paciente desde 7 de janeiro de 2005, quando veio para consulta para avaliação de catarata em ambos os olhos.
Ao exame apresentava catarata capsular posterior com visão corrigida de 20/40 J1 em ambos os olhos. Fundoscopia e pressão intra-ocular sem alterações. Na ocasião indicamos cirurgia de catarata, somente realizada em OD em 27 de outubro de 2005 devido ao quadro infeccioso em seio maxilar, somente melhor controlado esta semana.
O tipo de catarata (capsular posterior) em paciente jovem que fez uso crônico de corticoesteróides indica catarata cortisônica em AO.”
Não obstante o recrudescimento dos incômodos na região da encrenca se seguiu um pós-cirúrgico sem problemas, a menos de um certo desconforto na visão por conta das distinções entre um olho operado e outro não. Eu iria conviver com o desconforto até meados de janeiro de 2006, quando realizada a cirurgia do segundo olho, após adiamento da primeira data marcada.
Os resultados já se configuraram com uma visão clara e a leitura normal sem óculos, exclusive as letras minúsculas das bulas de remédio – uma leitura que espero se torne cada vez menos intensa. Resta acompanhar a evolução de um razoável desconforto na visão à distância, avaliado pelo Dr. Oftalmologista como decorrência de uma miopia por conta das lentes implantadas, e da dificuldade de remoção completa do tecido impregnado pelo medicamento, por situado na parte posterior do cristalino
Explorando Uma Outra Abordagem
No intervalo entre essas duas últimas cirurgias, ante mais uma repetição do quadro agudo dos incômodos, me pareceu oportuno explorar uma possibilidade há tempos levantada em conversa com a Dra. Infectologista, quando esta comentou os resultados bastante favoráveis já observados com a prática da homeopatia.
Iniciei o tratamento com a Dra. Homeopata três semanas após suspenso o tratamento da passagem do rodo, com a intenção e a consciência de um investimento a mais longo prazo. Após submetido a uma razoável dose de medicação alopata, boa parte dela com ação imunossupressora, era chegada a hora de recorrer a uma abordagem contrária para estimular o meu organismo a conviver melhor com aquela contínua agressão que passara a ser a minha respiração – assunto que trataremos logo adiante.
O Tamanho da encrenca e o porvir
Especificidades
Já ao final de 2005, decorridos aproximadamente três anos naquele rescaldo que apresentara resultados bem aquém dos esperados – aí considerada uma ambição mais modesta de recompor a estabilidade quanto a alguns aspectos funcionais e quanto ao bem estar –, me pareceram evidentes uma certeza e uma dúvida. A certeza de que a medicina, ou pelo menos aquela que se me apresentava, não tinha no seu histórico a solução de um caso com a singularidade que o meu assumira. Já a dúvida, dizia respeito a onde poderíamos chegar.
Aquelas evidências haviam se estabelecido também pelo maior nível de informação a respeito das especificidades da região, que incorporei no longo convívio com a prática médica. Estando o leitor a par dos tratamentos, me ocorre então discorrer a respeito daquelas especificidades, para então caracterizar a singularidade assumida pelo caso.
Reforçando, ao citar a região da encrenca estou me referindo ao seio maxilar, às células etmoidais e à fossa nasal – todos, no lado direito da face, onde havia o tumor –, que ocupando espaços distintos no projeto original da Natureza, acabaram por ocupar um espaço comum no meu caso. Uma vez já comentadas as especificidades do seio maxilar (Provocando o Incêndio / Cirurgia Seis – Percepções e Constatações), cabe aqui complementar com respeito os demais componentes.
As células etmoidais são pequenas cavidades formadas no etmóide, um osso que compõe a formação da base do crânio, e também das órbitas (olhos) e das fossas nasais. Essas células são admitidas como seios da face, o conjunto de cavidades ocas que resguardam a integridade do cérebro em caso de choque, tal como os seios maxilares.
Já as fossas nasais – uma para cada narina, separadas pelo septo nasal –, são componentes do nosso sistema respiratório, sendo por sua vez compostas por um conjunto de mucosas esponjosas de formato razoavelmente cilíndrico – as conchas nasais ou cornetos –, dotadas de intensa vascularidade sanguínea, dispostas em três níveis – inferior médio e superior. Todo esse conjunto – principalmente o corneto inferior, pelo maior porte –, atende às funções de limpar, aquecer e umedecer o ar que inspiramos, cabendo à anatomia da região a função de direcioná-lo até o cavum – uma comunicação no fundo da fossa nasal, através da qual o ar já tratado chega à faringe –, direcionamento esse que evita desconforto e danos por conta do turbilhonamento do ar.
A competência das funções da fossa nasal pode ser ilustrada em duas situações distintas, uma dizendo respeito a resultados e outra ao mecanismo de operação. Quanto à primeira, os otorrinos consideram que a função de aquecimento permite que o ar inspirado em uma temperatura ambiente entre -10ºC e +45ºC chegue à faringe na temperatura corporal – aproximadamente +36,5ºC. Na segunda situação, a eficiência da função limpeza é assegurada por um preciso mecanismo onde as impurezas contidas no ar inspirado são absorvidas pela mucosa, passando em seguida a ser deslocadas em direção ao cavum, de onde escorrem pela garganta para eliminação pelo sistema digestivo. Esse deslocamento é provocado pelo tapete muco ciliar, que reveste o tecido dos seios maxilares e de todos os componentes do sistema respiratório – da ponta do nariz até o pulmão.
Por último, nesse resumo das especificidades da fossa nasal, cabe destacar que as suas funções se caracterizam não só pela complexidade como também pela intensidade e permanente continuidade de operação – inspiramos cerca de vinte vezes a cada segundo, quando em repouso –, implicando plena mobilização de todo o aparato. Não à toa a Natureza proveu a região do nariz com dezesseis tipos de tecidos, com grande sensibilidade e atuações diversificadas, permitindo reações imediatas em diversas ocasiões, entre as quais mudanças bruscas de temperatura e presença de impurezas no ar.
O Olho do Furacão
A grande concentração de problemas do meu caso médico, em uma região com as especificidades recém caracterizadas, viria a sugerir uma transformação na imagem daquela tormenta que eu enfrentava. Agora, ela se transformara em um furacão, que após estacionar bem no centro da região da encrenca mantinha somente o seu movimento de rotação, justificando os danos ocorridos no seu entorno mais próximo, em destaque:
Alteração da anatomia, pela excisão de diversas das paredes ósseas e do corneto inferior, implicando comprometimento das funções operadas na fossa nasal e da proteção das áreas atingidas – seio maxilar; fossa nasal; células etmoidais;
Estabelecimento do sítio de bactérias, que expandiu as suas fronteiras para os limites da grande cavidade determinada pela alteração da anatomia – chegando inclusive a se alojar nas células etmoidais abertas, isto é, na parede contígua ao globo ocular;
Ressentimento em todo o tecido da região, provocado pelas numerosas e agressivas manipulações cirúrgicas – diversas delas em muito curto espaço de tempo –, e agravado pelos tratamentos por conta do sítio de bactérias.
Adicionalmente, na sua periferia, o furacão causara danos nas regiões contíguas, aí consideradas: as feições – pela depressão e assimetria acentuadas ao longo das diversas cirurgias; a boca, pela ação do parafuso incendiário; os olhos, pela administração de medicamentos em grande escala.
Singularidade
As especificidades da região, e as restrições por elas impostas à aplicação dos recursos da medicina para o reparo dos danos, acabaram por determinar a singularidade assumida pelo caso.
Como maior exemplo me ocorre o quão agressivo veio a se transformar o ato de respirar pela narina direita, e as limitações existentes para resolver o problema. Quando da inspiração, o ar admitido não sofre o tratamento adequado, pelo comprometimento das funções de limpeza, aquecimento e umedecimento. Pior, este ar sem tratamento é admitido sem o direcionamento próprio, implicando turbilhonamento. E pior ainda, incide diretamente sobre regiões constituídas de tecido não preparado para e contato com o ar – o que ocorre para o seio maxilar e as duas células etmoidais mais anteriores, que vieram a ficar expostas à respiração.
Em resposta à agressão, reações – o organismo acusa e protege. Acusa, estimulando ainda mais a contínua sensação de dor e incômodo, como ilustrado pela alegoria do elefante. Protege, pela contínua produção de uma secreção própria da membrana mucosa – o muco –, que, no entanto, extrapola os seus bons propósitos e acaba por provocar complicações: por espessa, não facilita o escoamento direto pela fossa nasal; retido, incentiva a cultura de bactérias; escoando lentamente pela garganta, interfere no funcionamento do intestino.
Avaliadas as possibilidades de solução cirúrgica, os resultados não se mostram animadores. Técnicas de rotação de retalhos locais não se aplicam, uma vez que não há tecido a ser rodado, e as técnicas de enxerto não são bem aceitas nas duas hipóteses possíveis – não existe no corpo humano um outro tecido à distância próprio para o transplante, e as estatísticas de rejeição em aplicação de prótese não recomendam esse procedimento.
Em tempos recentes ocorreu somente uma proposta de tratamento cirúrgico, que bem ilustra aquelas restrições. Em uma primeira cirurgia, seria feita uma a assepsia e desobstrução da região da encrenca, e na segunda seria feita uma arrumação geral a partir de um enxerto sintético em substituição à parede anterior do seio maxilar, utilizando um material em polietileno afixado com parafusos de titânio. Pela avaliação de um dos médicos proponentes, o risco de insucesso se situaria na ordem de 30%, por conta do histórico do caso.
Os tratamentos clínicos possíveis também não se mostram animadores no universo alopata. Fundamentados em corticóides, demonstram resultados a curto prazo combatendo os efeitos, porém, não agem sobre as causas dos problemas – que em última análise não podem ser erradicadas clinicamente. Desta forma, a medicação alopata implicaria tratamento permanente, cultivando problemas a longo prazo pela ação imunossupressora do corticóide.
Eterna (enquanto dure) X Para Sempre
Não foi a primeira nem a última, mas foi uma daquelas extremadas. Com nome de preciosidade produzida pela Natureza, a moça se apresentou fazendo jus ao nome e trouxe consigo aquelas emoções arrebatadoras que nos tomam de forma plena, desconsiderando todas e quaisquer barreiras, prescindindo da nossa entrega, comprometendo a razão e confundindo os sentimentos. Eu estava então apaixonado. Já ocorrera antes, mas agora – pensei – eu já tinha a minha atenção tomada pela paternidade e não seria arrebatado plenamente. Ledo engano, a tal preciosidade logo se disponibilizou também para os meus filhos. Eu estava então entregue à paixão, e era para sempre.
Aquela entrega foi vivida plenamente, não cabendo qualquer preocupação com umas manifestações de herpes que acometiam o objeto da paixão. Tanto, que um tempo depois vim a constatar idêntica manifestação nos meus lábios, uma decorrência natural da intensa e prolongada exposição ao vírus, o que continuou a acontecer.
Tempos depois, arrefecidas as chamas e restabelecida a reflexão, eu me perguntava o que havia mudado – eu, somente a minha perspectiva daquela preciosidade ou ela própria? –, afinal, naquele tempo a ciência ainda não estudava a temporariedade dos fenômenos que ocorrem em nosso organismo durante a paixão. Sem resposta, e já mais consciente, me ocorreu a sensação de estar sendo despido de todas aquelas emoções, e assim foi até não mais apaixonado. Ficaram as lembranças dos momentos, alguns belos e outros conturbados, e também algumas esparsas manifestações de herpes que foram rareando ao longo do tempo até não mais, também me abandonando – assim pensei.
Ledo engano, novamente, afinal a herpes voltaria a se fazer presente muitos anos depois, quando do medo sentido às vésperas da cirurgia no olho acima da região da encrenca. Recorrendo ao humor, evoquei Vinícius de Moraes – “...que seja eterna enquanto dure” –, e conclui a diferença entre paixão e herpes: esta última é para sempre.
E para sempre também veio me parecer o convívio com a singularidade desse meu caso, o que não veio a justificar conformismo. Mais uma vez então me vi desafiado. Desafiado a não brigar com a realidade, mas também a não aquiescer e perseverar no propósito do melhor.
O Porvir
No início de 2006, motivado pelo desejo da realização de projetos – a começar por este livro –, e por um organismo que insiste disponibilizado para uma vida normal, – continuando a refletir a Natureza trabalhando pela vida –, mas também consciente da tal singularidade assumida pelo meu caso médico, me ocorre perseverar com prudência.
Para a região da encrenca, o tratamento homeopata é uma tentativa no sentido de propiciar boa convivência com os danos de difícil reparo. A sua abordagem, que implica estímulo das defesas do organismo – em oposição à medicação alopata a que tanto me submeti –, é bem vinda e me estimula a perseverar mesmo ante a consciência que os resultados não ocorrerão a curto prazo.
Mais adiante, com a tônica da prudência, penso recorrer a cirurgias que amenizem a exposição do tecido da região à respiração.
Os danos na boca – dentes e gengiva – já resolvidos em termos de um provisório de longo prazo, serão retomados em termos definitivos com a conveniência dos cinco anos de término da radioterapia.
A catarata de origem medicamentosa já foi sanada, restando ainda acompanhamento e ajustes da visão à distância.
E por fim, a complementação da recomposição estética, embora necessária para amenizar a assimetria do rosto, será tratada por último no sentido de resguardar as forças e os recursos para as demais prioridades.
Fazer o que
Ao longo do tempo, repetidas vezes, tenho escutado esta pergunta ao término dos relatos sobre problemas no Brasil. Não raro, à pergunta se segue uma exclamação: “É a vida!” – mas seria uma vida normal desejada pelo cidadão?
E efetivamente, cabe fazer o que?
O cenário Brasil
Flertando com a Transgressão
A minha percepção sobre as causas dos problemas na prática médica foi se ampliando ao longo do tratamento. De início localizadas somente nos médicos, depois também nos agentes diretamente relacionados, obedecendo a uma seqüência estabelecida pelos próprios acontecimentos, até a constatação de que os Drs. Emblema e Gerência, embora distintos, comungavam o sentimento de impunidade da má prática médica. Ocorreu-me então que as causas às quais eu dedicava a minha atenção também se alinhavam com as nossas carências institucionais, uma questão de fundo que induz às más práticas em nossa sociedade.
Mais uma vez, agora com relação a um caso médico, o cenário Brasil se impunha nas minhas reflexões a respeito da vida normal.
Nos apresentamos como uma sociedade com traços psicossociais muito peculiares, assunto tratado com conteúdo e forma brilhantes por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, um fenômeno no nosso mercado editorial – o último dos exemplares que adquiri correspondeu à décima segunda impressão da vigésima edição.
Nesse cenário, a falta de identidade com os mecanismos institucionais se coloca em destaque, até pelo encadeamento com alguns outros dos nossos traços. Pelo descrédito nas instituições tendemos a uma atitude de convivência com os nossos problemas, o que justificaria o “É a vida!” em complemento ao “Fazer o que?”, denotando conformismo. E uma vez assumida aquela atitude de convivência desperdiçamos inclusive a nossa criatividade, então utilizada como instrumento para contornar os problemas, e não resolvê-los – afinal, “É a vida”. Contornamos continuamente, de forma criativa, problemas evitáveis por resolvíveis.
Desacreditadas e pouco exigidas, as instituições se distanciam dos seus compromissos, tendem à inoperância e comprometem os nossos direitos, o que implica mais riscos. Ante essas perdas, prevalece na nossa sociedade a atitude de renegar o exercício dos deveres, o que induz à permissividade, e daí ao flerte com a transgressão e mais descrédito das instituições. Como conseqüência natural desse círculo vicioso, a aquiescência com as más práticas.
Bem verdade que não estamos sozinhos, pois a prevalência plena do capital – o capital pelo capital –, fomenta a cultura da trapaça. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, o cientista político David Callahan analisa o aumento da trapaça e da impunidade na sociedade em The Cheating Culture – Why more americans are doing wrong to get ahead (Em tradução livre: A Cultura da Trapaça – Por que mais americanos estão fazendo a coisa errada para se dar bem).
Poderíamos então concluir que os malefícios de lá se dão na mesma ordem por cá, mas estaríamos cometendo enorme equivoco. Primeiro, porque os cultuadores da trapaça de lá tomam cuidados com a lei, já os de cá contam com a impunidade, pelo que atuam com maior desenvoltura e até mesmo pouco caso.
E mais ainda, porque a cultura da trapaça tem caráter igualitário – todos lhe têm acesso –, mas também discriminatório – a dimensão do benefício é exponencialmente proporcional ao nível do transgressor na escala social. Para os poderosos, quaisquer que sejam as suas armas, os benefícios assumem grandezas da ordem de milhões de reais, e com estes, facilidades de defesa e de abertura de novas portas. Já para o cidadão comum que cede à transgressão resta um benefício momentâneo, desprezível se comparado àquele, e um enorme prejuízo pelo fomento das más práticas que acabam por comprometer o nosso cotidiano – um guarda subornado para evitar uma multa pode vir a achacar o cidadão mesmo sem a ocorrência de infração, bastando para tanto o seu desejo de aumento nos ganhos. Obviamente que esse guarda, e esse cidadão, contam com as nossas carências institucionais, e através dos seus atos as fomentam ainda mais, até porque, nesse intento de assegurar benefícios na ordem de poucas centenas de reais, relaxam os seus critérios de exigência, tornando-se cúmplices – mas não sócios – dos benefícios de muitos milhões de reais que ocorrem mais acima.
Nesse contexto, os desiguais o ficarão ainda mais, e os menos favorecidos do Brasil perdem mais ainda. Segundo o BIRD (Banco Mundial) – Estudo Equidade e Desenvolvimento, publicado em setembro de 2005 –, em comparação com 129 países pesquisados, o Brasil é campeão da desigualdade social na América Latina, e em termos mundiais só é superado por quatro países africanos.
Uma vez mais pobres nos tornamos uma sociedade mais frágil, incentivando o flerte com a transgressão. A propósito, pesquisa qualitativa da intenção de votos divulgada pelo Datafolha em fevereiro de 2006 revela que, para a maioria dos entrevistados, a corrupção, educação, e até mesmo a saúde, embora reconhecidos como temas importantes para efeito de queixas e recusas de votos, são superados pela satisfação com transferência de renda e com nível de inflação. Considerados ainda outros dados apurados, a pesquisa indica a prevalência da idéia de que o importante mesmo é o aumento da renda, não importando o meio – indicando adicionalmente a falta de consciência das perdas por relevar temas como aqueles citados.
No entanto, considerados os problemas dos serviços de saúde, podemos concluir que os prejuízos causados pela cultura da trapaça atingem a todos os cidadãos brasileiros, em todas as camadas sociais. No meu caso, por exemplo, ocorreram más práticas em atendimentos de médicos particulares extremamente bem remunerados. E como divulgado cotidianamente pela imprensa, são gravíssimos os problemas no atendimento dos serviços públicos correspondentes, não obstante a altíssima carga tributária a que somos submetidos.
E em quaisquer dessas situações, “É a vida!”, diferentemente do que observei durante o atendimento de um senhor francês no hospital em Paris – para ele, um serviço público de saúde. Ante um problema na marcação de data, o cidadão reclamou veementemente os seus direitos, que foram respeitados. Para ele, a vida normal se estabelece a partir desses direitos, que são amparados inclusive pela aplicação da lei, uma vez que os erros cometidos nos serviços de saúde implicam efetiva punição dos culpados – médicos, enfermeiros, gestores e/ou funcionários administrativos –, podendo incorrer em suspensão ou cancelamento das atividades profissionais, e em vultosas indenizações.
E assim, ficam os desiguais cidadãos brasileiros contornando continuamente, de forma criativa, os seus problemas. Partindo da imagem de que a vida normal seria uma batalha contínua, em que o sucesso implica matar um leão por dia, me ocorre que o cidadão brasileiro passa a vida despendendo um enorme esforço contornando diariamente o mesmo leão: as decorrências do mau trato da coisa pública – aí considerando não só as questões e os bens diretamente relacionados ao Estado, como também a administração dos conflitos de interesses dos diversos agentes da nossa sociedade.
O mau trato da coisa pública usa e alimenta as nossas carências institucionais, induzindo às más práticas em quaisquer das atividades exercidas no Brasil, quer no âmbito público ou no privado. Assim ocorre inclusive com relação aos serviços de saúde em geral, o que justifica estendermos a reflexão a respeito de causas e efeitos relacionados àquelas questões. Afinal, o nosso flerte com a transgressão muito se deve a uma percepção equivocada das suas decorrências, e mais ainda, não representa a sociedade como um todo. Porém, muitos dos que renegam a transgressão estão cansados e descrentes, fazendo-se indispensável mobilizá-los.
A Vida Como Ela Está (Normal?)
Podemos recorrer a algumas poucas cenas para montar um filminho que expõe de forma clara as decorrências do mau trato da coisa pública nos serviços de saúde:
Cena Um:
No primeiro dia de dezembro de 2005, Natanael Elias de Almeida, um brasileiro de 49 anos, não resiste a uma parada cardíaca anunciada e morre dentro de uma ambulância, em frente ao portão da emergência do Hospital Rocha Farias, em Campo Grande, no Rio de Janeiro.
Ante os primeiros sintomas Natanael procurou um posto de saúde, de onde saiu em uma ambulância acompanhado da sua filha e de um médico, tendo chegado ao Hospital Rocha Farias ainda em condições de conversar e de caminhar – aparecendo sentado na maca da ambulância, em foto divulgada pela imprensa. Porém, nas circunstâncias em que se encontrava, não seria possível a Natanael contornar o leão, que então se apresentou.
Alegando falta de médicos clínicos no plantão, o hospital estava procedendo a uma triagem dos pacientes da emergência, somente internando aqueles considerados em estado muito grave, e assim não foi considerado o caso do Natanael. Não admitido, ele foi devolvido à ambulância para ser removido para uma outra unidade, levando consigo as fortes dores no peito que logo deixaram de incomodar. Antes mesmo da ambulância cruzar os portões de saída, uma parada cardíaca fulminou Natanael, não adiantando os esforços para reanimá-lo durante o tardio atendimento que se seguiu.
Natanael se foi, mas o leão continua forte e à solta, e cada vez mais, afinal o mau trato da coisa pública se dá hoje em dimensões inimagináveis mesmo para quem sempre esteve atento à sua evolução. Não obstante o caso relatado envolva um hospital estadual, nada indica que Natanael teria melhor sorte se atendido em hospitais administrados pela união ou pelo município – o noticiário divulgado pela imprensa justifica essa desesperança e nos informa múltiplas causas diretas relacionadas ao leão forte e à solta.
Cena Dois:
Pesquisando um tanto a respeito daquelas causas, me deparo com uma diretamente relacionada aos desatendimentos como o do Natanael, dizendo respeito ao governo federal – insisto, sem qualquer discriminação para o excelente desempenho do mau trato da coisa pública nos níveis estadual e municipal, afinal, todos se nivelam neste quesito, utilizando muito bem a fragilidade de uma sociedade empobrecida, e espelhando o flerte com a transgressão nela prevalente.
Aquela causa foi identificada pela análise da execução orçamentária do Ministério da Saúde no grupo de despesa investimento, com relação ao exercício de 2005. Segundo os dados oficiais colhidos no Siafi – o sistema de acompanhamento de gastos federais –, para um valor total autorizado de R$ 2.589 milhões, somente R$ 265 milhões (10,26%), foram pagos por conta de investimentos efetivamente realizados. O valor correspondente ao saldo daquele total autorizado acabou como restos a pagar, significando dizer que esse saldo de R$ 2.323 milhões poderá ser gasto no exercício de 2006, um ano de eleições, provavelmente após remanejado para investimentos mais rentáveis eleitoralmente, conforme intenção do governo federal. Essa intenção, divulgada logo no início das negociações com o Congresso visando a aprovação do orçamento para 2006, contemplaria o Bolsa Família (R$ 2,1 bilhões) e os programas de farmácias populares (R$ 206 milhões).
Com todas essas manobras o governo Lula chega a superar os anteriores, reafirmando o quão à vontade se sentem os nossos políticos na defesa dos seus próprios interesses, mesmo que às custas de deixar também à vontade o colapso cardíaco do Natanael, cuja morte mais que provavelmente seria evitada com o investimento na contratação de serviços médicos para atendimento nos hospitais públicos. Essa providência provavelmente será tomada em 2006, me levando à recomendação de que os usuários dos serviços públicos de saúde evitem colapsos cardíacos em anos não eleitorais.
Poderíamos ainda admitir que o desprezível investimento na saúde se deveu a mais uma das trapalhadas por conta da inoperância das entidades governamentais, como por exemplo, por mera desinformação a respeito. Não foi o caso, uma vez que o assunto foi objeto de matérias publicadas pela Folha de São Paulo no final de maio e no início de outubro de 2005. Nesta última, o Ministério da Saúde se pronuncia a respeito do problema, justificando: Do valor total autorizado para investimentos no ano, cerca de R$ 1 bilhão são destinados a emendas parlamentares, dependendo de negociações entre governo e parlamentares; O restante do valor autorizado, cerca de R$ 1,6 bilhões, é objeto de convênios com estados, municípios e entidades, convênios esses que costumam ser assinados a partir do segundo semestre.
Essas justificativas – negociações com parlamentares não realizadas; convênios com estados, municípios e entidades não assinados –, apresentadas pelo Ministério já no final de setembro de 2005, apenas três meses antes do término do exercício, não fazem sentido e subestimam o nosso discernimento. Resta saber se o governo se superou na esperteza, negociando o adiamento de todas as enfermidades – o caso do Natanael indica que não.
Cena Três:
Em fevereiro de 2006 ocorre solenidade de lançamento do programa de incentivo à construção civil, durante a qual o presidente Lula faz um pronunciamento.
No trecho exibido pelos telejornais, o presidente aproveita para um desabafo comentando algo como: “se não foi lançado antes (o programa), é porque o Brasil não estava preparado para isso antes. Vocês pensem como quiser”. O presidente deu mostras de estar reagindo a alguns insucessos que haviam ficado em exposição na imprensa, entre os quais a falta de ações governamentais próprias na crise da febre aftosa e na manutenção das estradas, o que motivaria o deslize de um certo desrespeito naquele desabafo. Mas desrespeito total ocorreu mesmo foi com o Natanael, que estava preparado para receber a ajuda que lhe foi negada por conta da retenção dos investimentos na saúde, ajuda que lhe teria mantido em vida. E afinal, o Brasil citado pelo presidente no seu infeliz pronunciamento, são os seus cidadãos, Natanael incluso.
Cena Quatro:
Lamentando pelo Natanael diversos brasileiros se imaginam imunes ao leão que o vitimou. Alguns, embora se reconhecendo pobre como a vítima, pela proximidade com os donos do poder, a quem servem. Outros, pela disponibilidade de recursos que lhes permitem dispensar os serviços públicos de saúde. Em ambas situações nada poderá ser assegurado, uma vez que aqui tratamos da vida normal no Brasil.
Para aqueles menos favorecidos que servem aos donos do poder, cabe lembrar o caso do Alberto Augusto de Oliveira, um garçom do Palácio Guanabara – no Rio de Janeiro –, que durante muitos anos serviu a governadores, parlamentares e autoridades diversas. No início de 2001 ele sofreu um infarto no próprio local de trabalho, sendo então levado para o Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro, onde realizou exames e foi medicado, após o que entrou na fila de espera por cirurgias relacionadas ao coração, uma vez que o seu caso foi considerado grave. Seis meses depois, o Alberto veio a morrer no Hospital Carlos Chagas, de insuficiência respiratória aguda causada pelos problemas cardíacos, sem que a cirurgia tivesse ocorrido. O nome do Alberto continua da lista de mais de quinhentos pacientes da fila de espera pela cirurgia, em alguns casos há mais de cinco anos.
Já para aqueles que têm recursos, cabe lembrar os diversos problemas ocorridos no meu caso médico, em destaque o comportamento do Dr. Emblema ao espelhar, como membro da diretoria de um hospital administrado pelo governo federal, o mau trato da coisa pública praticado por parte dos nossos governantes. O Dr. Emblema já incorporou que pode se sair muito bem fazendo a coisa errada, contando com a cumplicidade do ambiente que lhe cerca, a fragilidade da sociedade em volta, e a impunidade que acaba prevalecendo. Aliás, o Dr. Gerência, embora não tenha se apresentado como o seu colega, também se demonstrou confiante com a impunidade dos erros cometidos na prática médica. Em ambos os casos, e também em outras ocasiões, paguei muito caro pelos erros cometidos.
Poderes Públicos X Sociedade - Espelhamento, Indução e Uso
O entendimento de que cada povo tem o governo que merece peca por não traduzir a interação que se estabelece entre eles, envolvendo espelhamento, indução e uso, segundo dimensões distintas para cada sociedade, dependendo da solidez das suas instituições.
Assim sendo, e aqui considerando o governo como o resultado da atuação dos três poderes públicos – Executivo, Legislativo e Judiciário –, no Brasil aquela interação ocorre em uma dimensão cada vez mais desmedida, focada tão somente no interesse dos detentores do poder, nos reafirmando continuamente como o país de um futuro que nunca se faz presente. Em decorrência, a desesperança e a indução às más práticas, o que justifica nos estendermos a respeito, focando o nível federal do governo pelas maiores repercussões das suas ações.
Sociedade:
Com uma clara prevalência do descrédito nos poderes públicos e das dificuldades de mobilização e participação social, estabelece-se na nossa sociedade uma tendência na busca do messias – alguém capaz de resolver todos os nossos problemas, superando todas as nossas incapacidades e utilizando somente um tanto das nossas capacidades. É uma abordagem cômoda, repetidas vezes testada, mas sem resultados.
Projetando a figura do messias nos nossos representantes no Legislativo e no Executivo, mas principalmente no presidente da república, neles depositamos a nossa fé e espelhamos os nossos traços prevalentes – flerte com a transgressão incluso. Ao longo do tempo, induzido pelos nossos próprios messias, nos fragilizamos por uma progressiva pobreza, pelo que cada vez mais deixamos prevalecer a nossa aquiescência.
Executivo:
No Brasil, o Executivo se sobrepõe plenamente aos demais poderes públicos, usando para tanto os recursos que concentra, os direitos que lhe são autorgados pelo nosso regime, o uso desmedido da máquina do Estado, e também, a confiança e fé que lhe são depositados pela sociedade. Esse desequilíbrio de forças lhe permite ingerência no Legislativo e no Judiciário, o que é praticado sem o menor pudor, em benefício desse poder prevalente e em prejuízo da sociedade.
Quanto à interação com a sociedade, o executivo tem privilegiado o uso da fragilidade da maioria, colocando em destaque ações assistencialistas que induzem aos resultados eleitorais desejados, mas também induzem a uma perversa permanência na pobreza, estabelecendo níveis de exigências e referenciais de avaliação muito convenientes para o indutor. Um exemplo interessante e pouco divulgado está retratado na Pesquisa Nacional Qualidade da Educação: A Escola Pública na Opinião dos Pais, realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), divulgada em maio de 2005, e disponível em http://www.inep.gov.br/basica/saeb/publicações.htm.
Bem verdade que a miséria de muitos impõe a ajuda imediata através de programas assistenciais de caráter provisório, mas não justifica a brutal contenção dos gastos e dos investimentos na área social. Inclusive a saúde conforme já relatado (Fazer o Que? / A Vida Como Ela Está (Normal?) – Cena Dois), uma política danosa não só pelos casos fatais como o do Natanael, como também pelo comprometimento de um futuro saudável para os sobreviventes.
Foco maior das esperanças frustradas, o Executivo – mais precisamente a presidência da república –, acaba se colocando como indutor maior da descrença nos poderes públicos, e mais, também foco maior do espelhamento do nosso flerte com a transgressão, se coloca como o indutor maior das más práticas na nossa sociedade. Tudo isso tem ocorrido no governo Lula com uma dimensão preocupante, não só pelo já constatado, como também pelos riscos de sucesso do movimento em curso para entronizar um messias populista, que se coloca acima das instituições e bem espelha o flerte com a transgressão – e como já vimos, esse filme é demorado e o final é péssimo. A propósito, você lembra do nome de algum dos dirigentes daqueles países nórdicos? – muito provavelmente não, porque eles dispensam o messias, mas nem por isso deixam de ocupar sempre as primeiras posições na lista do I. D. H. (Índice de Desenvolvimento Humano).
Pelas suas más práticas o Executivo acaba como campeão de ações judiciais, ora como autor, ora como réu. O grande volume dessas ações contribui em muito para a inoperância do Judiciário, configurando uma estratégia adotada pelo Executivo para postergar o cumprimento das suas obrigações com a sociedade. No caso da saúde, não bastasse o volume das ações movidas por pacientes que reivindicam o direito à vida, há ainda aquelas em que entidades médicas reivindicam meios para o digno exercício da profissão.
Legislativo:
Ao Barão de Itararé, talvez o crítico mais bem humorado dos nossos males, é creditada a decomposição dos congressistas em duas parcelas: noventa por cento deles são responsáveis pela má reputação que atinge inclusive os demais dez por cento – faz sentido.
Induzido pelas atratividades ofertadas pelo Executivo, confiante na impunidade no seu âmbito e no do Judiciário, e consciente da pouca exigência do eleitor – que via de regra nem mesmo acompanha o desempenho do seu candidato –, aquela maioria exagerou a tal ponto que o Legislativo perdeu a capacidade de semear a desesperança. Mas não a de induzir às más práticas na nossa sociedade
Havia a expectativa de como se comportaria a bancada do PT, experiência única de um partido criado de baixo para cima, estabelecido no poder, mas aí deu no que deu: as mais inacreditáveis cenas explícitas de transgressão, obstruções de investigações, e até mesmo ritual de dança celebrando a agonia do decoro.
Morta essa esperança, restava a ocorrência de um evento que marcasse, de forma emblemática, o exagero a que se permite o Legislativo, e ele veio a ocorrer por iniciativa do presidente da Câmara, o deputado Aldo Rebelo do PCdoB de São Paulo, guindado ao cargo por mais uma das ingerências do Executivo. No final de janeiro de 2006 o jornal O Globo publicou matéria divulgando a opção desse presidente da Câmara na designação do seu substituto, que aparece em foto presidindo uma sessão da Casa. Segundo a matéria, dentre os quinhentos e treze deputados possíveis, a escolha recaiu sobre o deputado Natan Donadon, do PMDB de Rondônia, como recompensa pela ajuda na eleição para a presidência da Casa.
Condenado à prisão por conta de fraudes nas finanças da Assembléia Legislativa de Rondônia, o escolhido passara vinte meses como foragido da justiça até ser socorrido pelo PMDB e assumir, como suplente, uma cadeira na Câmara. Com isto, o mandato de prisão expedido pela justiça perdeu efeito, e o agora deputado só poderá ser preso em flagrante delito, tendo ainda o seu processo passado à jurisdição do Superior Tribunal Federal. Reforçando, o exagero no caso não se dá pelos atos do deputado designado, já anteriormente noticiado para outros políticos com essa mesma dimensão, mas sim pelo distanciamento do presidente Aldo Rebelo com relação às conseqüências da designação, desconsiderando a indução ao descrédito e às más práticas nela embutida.
Perante todo esse caos, poderíamos concluir que chegamos ao final. Não, apenas estamos cumprindo uma etapa. O estudo Mudanças na Classe Política Brasileira, do cientista político Leôncio Martins Rodrigues, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), revela recente ocupação do legislativo pelos partidos ditos de esquerda, na esteira do fenômeno eleitoral Lula. Nessa ocupação ascenderam políticos vindo de baixo – técnicos, funcionários públicos, bancários, professores da rede pública, e outros, grande parte deles ocupando atividades sindicais –, o que explicaria, segundo o estudo, a voracidade com que alguns grupos políticos e personagens avançaram sobre a chamada “coisa pública”, como parte de um projeto pessoal de ascensão social.
Podemos entender que a ascensão da classe média levou junto o nosso flerte com a transgressão, afinal, a parcela dos que flertam é mais ativa e ocupa os espaços rapidamente. E o Legislativo é um ambiente fértil para a cultura da trapaça, dispondo de diversos instrumentos próprios, inclusive o voto secreto para o julgamento em plenário dos seus transgressores. Mas também conta com os vacilos da opinião pública, como ocorrido logo após aprovada a redução do recesso parlamentar, quando a avaliação da Câmara melhorou, retornando aos níveis anteriores à divulgação do escândalo do mensalão. Recomposta a avaliação por tão pouco, seguiu-se a absolvição em massa dos mensaleiros.
Ainda assim, aqueles dez por cento a que se refere o Barão de Itararé tentam algumas ações úteis, e existem várias a serem atendidas. Por exemplo, as comissões permanentes, uma delas a Comissão de Assuntos Sociais no Senado, onde funciona a Sub-comissão Permanente de Promoção, Acompanhamento e Defesa da Saúde.
A lamentar, que a atuação desta não esteja correspondendo ao seu nome, uma vez restrita à tramitação das matérias apresentadas – projetos de lei; requerimentos; mensagens; ofícios judiciais; medidas provisórias. Ainda a lamentar, a inconveniência de que algumas matérias se restrinjam a um foco específico do assunto tratado, conflitando a abordagem abrangente e integrada que se faz necessária para as questões da saúde. Um exemplo diz respeito ao Projeto de Lei do Senado número 430, de 2003, que: “dispõe sobre a obrigatoriedade da manutenção de programa de humanização do atendimento pelos hospitais do País”. Já no artigo primeiro, a proposição delimita a aplicação das normas estabelecidas somente aos hospitais que possuem unidades de maternidade, pediatria, geriatria ou tratamento intensivo. Mais adiante, estabelece: “As parturientes e os pacientes com idade igual ou superior a sessenta anos, menores de dezoito anos e incapazes terão direito a serem acompanhados por um familiar ou outra pessoa de sua escolha durante a internação hospitalar, inclusive em unidade de terapia intensiva”, delimitando desta forma os pacientes a serem beneficiados.
Menos mal que a assessora da autora do projeto tenha se proposto a encaminhar a sua ampliação, demonstrado sensibilidade para o assunto ao ler o Retorno Assistido (Provocando o Incêndio / Cirurgia Seis – Percepções e Constatações).
Judiciário:
Marcado pela inoperância, por conta de códigos processuais que estabelecem ritos intermináveis e das deficiências dos seus métodos de trabalho, e também afetado pelas más práticas de alguns dos seus membros – neste caso uma minoria, ao contrário do citado pelo Barão de Itararé para o Legislativo –, o Judiciário estimula a sensação de impunidade que induz às más práticas de uma maneira geral.
Como exemplo de inoperância, não obstante o noticiário nos coloque um volume substancial de casos bem mais representativos, podemos nos valer do processo aqui relatado (O Processo – Inspirado em Franz Kafka).
Já como exemplos de más práticas de membros do Judiciário podemos destacar duas situações.
A primeira diz respeito aos magistrados no exercício de suas funções de juiz e, principalmente, na qualidade de presidente de tribunais superiores, com atuações marcadas por interesses políticos-partidários, inclusive com claras intenções de candidaturas a cargos eletivos após a aposentadoria próxima. Assim nos foi dado a perceber pelas atuações dos ministros Nelson Jobim no Superior Tribunal Federal (STF), e Edson Vidigal no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que deveriam ter se declarado impedidos para muitas das matérias em que propiciaram decisões favoráveis a possíveis aliados já na eleição de 2006. O desejável mesmo seria o estabelecimento de uma quarentena para impedir a candidatura de juizes tão logo deixem os tribunais, como defende a própria Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).
Uma segunda situação que exemplifica má prática diz respeito a decisões do STF que beneficiam políticos acusados de corrupção, como é o caso da concessão de liminar de soltura para o político Paulo Maluf e o seu filho, Flávio Maluf, ambos acusados de corrupção passiva, evasão de divisas, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Com relação a Flávio, a decisão foi tomada pelo plenário quando do julgamento de um pedido de habeas-corpus, julgamento este que desconsiderou norma estabelecida pelo próprio tribunal, que impede o julgamento de habeas-corpus no STF antes que o mesmo pedido tenha sido analisado no seu mérito pela instância inferior. No caso, o mesmo pedido havia sido negado por um dos ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ), e esse tribunal ainda não havia julgado o mérito – ocasião em que todos os ministros se manifestam a respeito.
Encerrada a sessão do STF que concedeu a liminar para Flávio Maluf, os advogados da defesa solicitaram verbalmente a extensão do benefício a Paulo Maluf, o que veio a ser aprovado por decisão do relator do caso, ministro Carlos Velloso. Para um cidadão que acompanhou a trajetória do réu e teve acesso ao farto material divulgado a respeito do caso, a decisão do ministro induz ao sentimento de impunidade. Mais ainda, se considerada a declaração do ministro: “Eu realmente imagino o sofrimento de um pai preso na mesma cela que um filho. Isso me sensibilizou”. E muito mais ainda, se considerada a foto publicada na imprensa, na qual o ministro aparece cumprimentando efusivamente o advogado da defesa, imediatamente após encerrada a sessão plenária. Resta a esperança de que os promotores envolvidos no caso não desistam.
Bem pior, no entanto, serão as conseqüências da provável blindagem dos políticos acusados de má gestão pública ou de desvio de dinheiro. Assim ocorrerá se confirmado o entendimento prevalente entre os ministros do STF em fevereiro de 2006, em discussão que tramita desde 2002 por conta do julgamento de recurso apresentado pelo ex-ministro do governo Fernando Henrique Cardoso, Ronaldo Sandenberg, condenando em primeira instância pelo uso de aviões da Força Aérea Brasileira para viagens turísticas. Dos onze ministros da corte, seis entenderam que o presidente da República, ministros de Estado, governadores, secretários estaduais, ministros do STF e o procurador-geral da República não estão sujeitos à Lei de Improbidade (má gestão pública), mas sim à Lei de Crimes de Responsabilidades, onde as penas aplicáveis são absolutamente mais brandas.
A substituição de uma lei pela outra implicará ainda: O Ministério Público deixa de conduzir a investigação, que passa para a alçada do Legislativo; O julgamento, atualmente de competência da Justiça comum, vai para o STF ou Tribunais de Justiça de cada Estado; Prefeitos, deputados e senadores, que também gozam de uma legislação específica, deverão pedir a extensão do benefício; Serão extintas cerca dez mil ações em curso – só na cidade de São Paulo, a Promotoria da Cidadania pede que políticos investigados devolvam R$ 36,39 bilhões aos cofres públicos.
Ainda com relação ao assunto, a imprensa divulga os argumentos do Ministério Público para o impedimento de dois ministros: Gilmar Mendes, por se defender em ações de improbidade atualmente em curso; Nelson Jobim, por ter sido colega de ministério do autor da ação.
Nesse cenário, faz sentido que os políticos e os gestores responsáveis pelo caos da saúde pública, assim como alguns agentes relacionados à medicina particular – inclusive médicos como os Drs. Emblema e Gerência –, comunguem o sentimento da impunidade.
Está Bom para Você?
No atual estágio do Brasil a alguns já não interessa a solução dos problemas, pois estão muito bem adaptados e tiram bastante proveito, do jeito que está.
Ocorre-me a parábola de uma loba privilegiada pela natureza com muitos recursos, tendo como único senão as tetas, mais especificamente no que diz respeito à posição das mesmas – tortas. Esse senão veio a implicar, como requisito adicional para a evolução da prole, aptidão de abdicar da postura correta para melhor alimentação. Ao longo do tempo, a minoria melhor adaptada prevaleceu, e pelas suas forças, cada vez mais entortou as tetas, tornando-as mais próprias para si e dificultando cada vez mais a alimentação do restante da prole. Contaram inclusive com a ajuda de alguns dessa maioria, que passando a se alimentar das sobras dos mais fortões, vieram a se entregar ao flerte com a postura incorreta, na esperança de que quanto mais torto, mais sobras – o que nunca veio a se confirmar. Hoje, as poucas forças da maioria mal dão conta da trabalhosa alimentação, acarretando fragilidade que dificulta até mesmo a percepção do problema, dificultando mudanças.
Tentativa recente foi feita em clima de grande esperança, mas a liderança e o seu grupo logo revelaram enorme capacidade de se fazer torto, e superaram todos os demais. Prevalecendo, não se contentaram em flertar com a transgressão e assumiram compromisso integral com ela, cooptaram os demais nos momentos próprios, e foram em frente até se instalarem no poder com ambições e práticas desmedidas. Menos mal que eles vieram a se desprender plenamente do âmbito dos mortais, perdendo o controle da dosagem, e aí a coisa desandou.
Ainda assim, mesmo já constatados o engodo e os riscos da tentativa, seu final ainda não é conhecido, o que evidencia a prevalência do flerte com a postura incorreta.
Pelo histórico, não parece sensato esperar que as mudanças ocorram por iniciativa dos mais bem alimentados, até porque os nossos movimentos para desentortar decorrem de conflitos pela má distribuição do produto da transgressão, o que leva um dos participantes ao delato. Mas mesmo nestes momentos, as punições tendem a se restringir a alguns poucos exemplados, usualmente os arrogantes. O corruptor e os corrompidos fazem pouco de todos os bons costumes, exceção feita à cordialidade que facilita as negociações, pelo que não toleram parceiros arrogantes.
Nesse contexto, nos mantemos à distância, eventualmente cedemos a momentos que instalam clima de copa do mundo – por emocionais que somos, e em alguns casos também pela atratividade da exposição –, mas acabamos de volta ao “É a vida!”, nos admitimos incapazes de qualquer contribuição, e cada vez mais induzidos ao flerte com a transgressão.
Porém, passados cinco séculos de um Brasil onde prevalece a transgressão, já há um histórico que permite aos seus cidadãos se questionarem a respeito. Após tantos filmes em que mudam os atores, mas permanece o enredo, cada um de nós deve, no mínimo, se perguntar: Estou sendo beneficiado pelo enredo?
Para responder não é recomendável se ater aos discursos dos políticos no governo e aos dados por eles divulgados. Em algumas situações, porque não parecem refletir a realidade com que nos defrontamos, como é o caso dos índices de inflação. Tomando a área de saúde como exemplo, o Instituto Brasileiro Geografia e Estatística (IBGE) apurou que em 2005 tivemos uma inflação de 5,69% (IPCA), tendo no mesmo período ocorrido os seguintes aumentos: 12,02% para planos de saúde, cujos preços são administrados pelo governo; 8,94% para os demais serviços de saúde, com preços livres de controle. O mesmo se dá para os aumentos dos outros serviços, também apurados pelo IBGE, alguns deles de uso obrigatório e com repercussão na composição de outros preços, como a energia elétrica, com variação de 8,03%.
Já em outras situações, os dados divulgados não podem ser considerados sem levar em conta outros fatos relacionados. Assim ocorre para o ganho observado no salário mínimo, que se fez acompanhar do aumento do número de pessoas que recebem um valor inferior a ele. É o que nos revela a Pesquisa Mensal do Emprego do mesmo IBGE, que acusa uma média de 14,5% da população ocupada (2,8 milhões de pessoas) nessa situação. Em 2004 eram 13,8%, e em 2003 11,9%. Esses números comprometem a distribuição de renda propalada pelo governo, o que é lamentável, pois ela reduziria em parte a fragilidade da nossa sociedade pela pobreza. Os menos favorecidos teriam uma vida mais normal, assim como os demais brasileiros, com uma sociedade menos vulnerável aos políticos demagogos e à criminalidade.
Cabe então, para melhor avaliação dos benefícios desse enredo a que estamos submetidos, que cada um de nós responda a algumas questões bem objetivas, considerando a sua própria realidade e a daqueles que o cercam:
Melhoraram as ofertas de trabalho? (vagas e salários)
A renda tem mantido a capacidade de consumo?
É justa a carga tributária a que somos submetidos?
Melhorou a qualidade de algum dos serviços públicos?
E daqueles administrados pelo governo através das Agências Reguladoras?
O governo contribui para que você exerça quaisquer dos seus direitos?
Concluindo que os benefícios não são notados, restaria a dúvida se poderão vir a ser. Devemos, portanto, nos submeter a alguns outros questionamentos diretamente voltados para as práticas desmedidas que se estabeleceram com o governo Lula, onde o flerte com a transgressão evoluiu para um compromisso mais sério, mas as vagas de beneficiários contemplam uma minoria, uma vez considerado que os programas assistencialistas objetivam cativar os votos dos fragilizados e não a erradicação da pobreza. Nesse caso, cada um de nós deve responder as questões considerando as suas próprias possibilidades de sucesso neste Brasil de 2006:
O governo Lula expandiu os cargos de confiança de três mil para vinte mil – posso vir a ser nomeado para um deles?
Existem também vagas como assessor informal, sem nenhuma exigência de qualificação, cujos ocupantes acabam como empresários de sucesso na região do ABC paulista, nos fazendo lembrar uma citação creditada a Friedrich Engels: “A quantidade altera a qualidade – um punguista de certas dimensões vira financista”. Porém, acabam enrolados com assassinatos de prefeitos. Pelos riscos, as possibilidades de uma vaga aqui devem ser maiores – não é muito arriscado, com esses promotores persistentes?
Com a absolvição em massa dos mensaleiros pelo plenário da Câmara, alguns deputados podem expandir o quadro de funcionários de confiança, para dar vazão ao aumento do tamanho da mala de dinheiro – isso não causa problema na coluna?
Com ministros de Estado também se dedicando a violar o estado de direito, e depois da bobeada na quebra de sigilo do caseiro, é bem provável a criação de vagas para bode-expiatório – neste caso, antes de qualquer conclusão é bom saber se os advogados que defendem o Antonio Palocci, os mesmos que trabalham para o Paulo Maluf, ainda se dispõem para novos clientes, e mais, se existem fontes de recursos para pagá-los.
Concluindo essa breve recorrência ao humor possível para o caso, até pelo receio da banalização do problema, poderíamos também estender o critério para melhor avaliar se está valendo a pena, afinal, com o comprometimento do pão, pelo menos poderíamos contar com o circo.
Mas aí devemos excluir o futebol, onde a transgressão já se estabeleceu prevalente com resultados nada animadores: Os fãs dos craques da seleção saíram do estádio e foram para o sofá, onde podem assistir os ídolos atuando nos campeonatos estrangeiros; No campeonato nacional de 2005, os quatro times rebaixados para a série B eram comandados por dirigentes envolvidos em escândalos; No campeonato estadual do Rio de Janeiro de 2006, os times pequenos superaram os grandes no campo, mas ficaram no mesmo nível no quesito transgressão; Na arbitragem, tivemos problemas tal como na Alemanha – a diferença é que o juiz ladrão de lá já está entregue ao sistema prisional, onde permanecerá durante a pena. Por cá, em liberdade, o nosso aproveita para tentar faturar um pouco mais fazendo o lançamento de um livro.
Resta, pelo menos, os breves momentos de copa do mundo, quando repatriamos os selecionáveis e nos glorificamos pela reafirmação da superioridade deles, devidamente capitalizada pelos políticos então instalados no governo. Como recompensa, esses políticos acobertam as más práticas dos dirigentes do futebol, e estes nos remetem novamente ao sofá.
A Saúde da Opinião
Ainda sobre os tantos filmes com mesmo enredo, poderíamos também questionar: Qual o papel do cidadão?
Na perspectiva daqueles que dirigem os filmes – os governantes –, somos coadjuvantes de importância fundamental em algumas situações. Uma delas, quando desempenhamos o papel de contribuintes, como mostram os constantes recordes de arrecadação comemorados pelo governo, mas não pela sociedade, uma vez que não se observa o devido retorno através de investimentos em serviços públicos e infra-estrutura. Em uma outra, quando colocamos a nossa opinião em períodos eleitorais, cuja importância fica atestada pelo volume de recursos investidos pelos políticos em pesquisa e em marketing político, objetivando melhor conhecer e induzir as tendências de opinião.
No entanto, não constatamos o interesse dos governantes em uma opinião mais fundamentada, aí considerados inclusive o pequeno investimentos e a pouca seriedade dedicados à educação. Como um dos inúmeros exemplos a respeito, uma pesquisa realizada em 2005 pelo Instituto Paulo Montenegro, um braço social do IBOPE, revela que 68% dos brasileiros com mais de 15 anos são analfabetos funcionais – mesmo índice apurado quatro anos antes.
Essa realidade favorece tão somente aos governantes mal intencionados, afinal, a saúde da sociedade está intimamente condicionada à saúde das instituições que a regem, e esta última, por sua vez, remete o condicionamento ao cidadão, mais especificamente, à saúde da sua opinião e ao efetivo exercício da mesma.
Colocamo-nos então diante de um belo desafio: cultivar a saúde da opinião sem o amparo dos investimentos em educação, contando fundamentalmente com os diversos veículos de imprensa em uma sociedade marcada pelo mercado de consumo. Esse mercado tem incentivado padrões de comportamento voltados para uma dinâmica que lhe é própria – produtos constantemente renovados, veiculados por imagens de grande apelo junto ao público alvo.
No caso da imprensa, aquele incentivo tende a reforçar um noticiário permanentemente renovado, privilegiando os fatos relacionados a personalidades, com ênfase na exposição do como acontece e na exploração dos sentimentos envolvidos. Uma linha de atuação restrita, que retrata tão somente o “instantâneo”, para consumo imediato. No entanto, a saúde da opinião requer uma outra abordagem, fortuitamente adotada por alguns dos órgãos da imprensa, sendo exemplo o jornal Folha de São Paulo. Ela contempla inclusive o porquê do fato noticiado, através de uma síntese dos seus antecedentes e dos demais fatos relacionados – retratando o “filme” –, o que propicia mais e melhores conhecimentos para o discernimento de causas e efeitos, fundamentando a opinião.
Esse discernimento é sempre da maior relevância, principalmente quando avaliamos noticias relacionadas à cidadania. Com efeito, considerando que não só a informação, mas também os referenciais que lhe dão significado fundamentam a opinião, especial atenção devemos dedicar aos referenciais herdados do nosso processo histórico – os traços psicossociais tratados por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, e o flerte com a transgressão aqui tratado. A percepção das suas implicações nos repetitivos problemas da nossa sociedade motivará o questionamento e, em conseqüência, a libertação daquelas heranças inconvenientes.
E aí me ocorre Jorge Luis Borges: “O passado é indestrutível. Mais cedo ou mais tarde as coisas retornam, e uma delas é o projeto de destruir o passado”. Porém, ao questionar os nossos referenciais, não estaremos buscando destruir o passado, mas apenas mudar os seus efeitos.
Essa mudança é uma pendência antiga, segundo diversos registros históricos, inclusive o do naturalista Charles Darwin quando da sua passagem pelo Brasil durante a expedição de pesquisa a bordo do Beagle, realizada entre 1831 e 1836. No diário da expedição Darwin registrou não só o observado sobre a fauna, a flora e a geologia dos lugares visitados – o que viria a resultar na publicação de A Origem das Espécies –, mas também as suas observações sobre os homens que encontrou ao longo do caminho, isentas de qualquer interesse político ou econômico se considerados os propósitos da expedição. A respeito do Brasil: “Se ao que a natureza concedeu aos brasis o homem acrescesse seus justos e adequados esforços, de que país poderiam jactar-se seus habitantes! Mas, onde a maioria ainda está em estado de escravidão e onde o sistema se mantém por todo um embargo de educação, fonte principal das ações humanas, o que se pode esperar, a não ser que o todo seja poluído por sua parte?”. E mais ainda: “Não importa o tamanho das acusações que possam existir contra um homem de posses, é seguro que em pouco tempo ele estará livre. Todos aqui podem ser subornados”.
Contando com a imprensa para tornar saudável a nossa opinião, devemos ainda atentar para a conveniência de recorrermos a mais de uma fonte, o que pode ser exemplificado pela divulgação de uma pesquisa acusando maior endividamento da classe C – famílias com rendimento mensal entre R$ 1.200,00 e R$ 3.000,00 –, relacionado ao aumento do consumo. Essa notícia foi vinculada por dois telejornais, no mesmo dia, com diferentes efeitos. No primeiro, o apresentador narrou a notícia durante a projeção de imagens com dados a respeito dos aumentos da dívida e do consumo, merecendo ambos o mesmo destaque. No segundo telejornal, a matéria teve início com uma breve citação do aumento da dívida, seguindo-se a projeção de imagens de um consumidor expondo sua satisfação pela geladeira abastecida com produtos antes inacessíveis, imagens essas que se alongaram até o fim da matéria. Este segundo telejornal induziu o telespectador a uma percepção de melhora na economia – involuntariamente, ou não.
Fatos como esse justificam a avaliação da qualidade da fonte de informação utilizada, observando o quanto ela se propõe a defender a mais que o capital do investidor, preservando a sua missão. Nada contra o capitalismo, o sistema que prevaleceu e vai perdurar pelas compatibilidades com a própria natureza dos homens, mas é bom se precaver contra as distorções por conta da cultura da trapaça, quando o capital é investido tão somente em seu benefício. No caso da imprensa, esses excessos eventualmente se manifestam sob a forma de notícias que induzem aos propósitos dos patrocinadores – públicos ou privados.
O esforço para uma opinião saudável se complementa e justifica pelo seu efetivo exercício, o que ocorre quando da nossa participação nos diversos eventos que influenciam os rumos da sociedade, determinando a normalidade da vida. E aí, mais uma vez considerando o comportamento prevalente – “Fazer o que? É a vida!” –, devemos reconhecer as nossas dificuldades, uma vez que tendemos a renegar desde a participação em reuniões de condomínio até mesmo o voto. Essa tendência tem induzido a uma atitude de omissão que, lamentavelmente, se manifesta de forma mais acentuada entre aqueles que também renegam o flerte com a transgressão, que então se estabelece como prevalente.
Ao longo da história essa prevalência tem implicado severos danos a uma vida mais normal na nossa sociedade, impondo a necessidade de mudança daquela atitude de omissão. E muito mais, se considerado que os danos assumem dimensões cada vez maiores.
Em tempos anteriores, podíamos nos permitir o pecado da omissão e assistir com indiferença a ação daqueles que se apossavam dos recursos públicos, sem colocar em risco pleno a nossa vida normal. Podíamos, embora não devêssemos inclusive pela questão do espelhamento dela decorrente, admitir a convivência com um político da linha “rouba, mas faz”, como rotulado abertamente o paulista Ademar de Barros, governador do estado quando deflagrada a dita revolução de 1964. Os recursos eram então desviados com uma dimensão modesta em relação aos dias de hoje, circulavam em espécie e assim chegavam a ser guardados. Tornou-se histórico o cofre do governador Ademar de Barros, objeto de seqüestro por parte dos idealistas que aderiram à luta armada contra a ditadura militar, ironicamente com a participação da hoje ministra do governo Lula, Dilma Roussef.
Já em tempos recentes, os resultados da transgressão ganharam dimensões inimagináveis. A circulação em espécie não mais se faz obrigatória, sendo mantida somente para os freqüentes repasses no varejo, que implicam substancial valor por praticados em escala. Porém, muito mais substanciais são os valores que circulam através do planeta de forma invisível, contando com os mecanismos de um mercado financeiro habilitado para administrar a ocultação do capital concentrado. Pelas informações divulgadas a respeito das contas da família Maluf no exterior, o mesmo estado de São Paulo nos dá uma referência comparativa: os saldos dessas contas, contados em centenas de milhões de dólares, certamente superam em muito os valores do governador Ademar de Barros.
Lamentavelmente, os desvios praticados pelos nossos políticos não têm sido apresentados de forma a melhor explicitar os danos decorrentes, como por exemplo, o número de escolas e hospitais – funcionando bem – sonegados à sociedade. Mesmo assim, não cabe qualquer dúvida que o político Paulo Maluf, pelos mecanismos que dispõem os transgressores atuais, nos deve muito mais educação e saúde que o seu antecessor distante Ademar de Barros. Injusto, no entanto, restringir o problema a esses dois políticos e admitir que o Paulo Maluf superou todos os demais, uma vez que o noticiário continuamente nos revela diversos políticos cada vez mais ambiciosos e desenvoltos nas suas más práticas.
Por toda a evolução desse contexto desfavorável, a saúde e exercício da opinião se estabelecem como indispensáveis para um melhor uso do voto, o único instrumento de mudança que dispomos. E esse melhor uso não deve se restringir aos momentos eleitorais, pois o voto mais consciente implica inclusive o acompanhamento das atividades do eleito, avaliadas segundo referenciais mais próprios que aqueles herdados do nosso processo histórico.
Esse é um investimento permanente, mas de extrema valia, pois nos consumirá bem menos que a contínua vida anormal a que somos submetidos pelos excessos no mau trato da coisa pública.
E aí me ocorre Bertold Brecht: “Há homens que lutam um dia e são bons; há outros que lutam um ano e são melhores; há aqueles que lutam muitos anos e são muito bons; mas há os que lutam por toda a vida. Esses são imprescindíveis”. Ao nos assumir como esses imprescindíveis, poderemos transformar o nosso atual círculo vicioso, em um outro, virtuoso, no qual: da saúde da opinião decorre a constatação das perdas, que leva à indignação e ao debate das causas e efeitos, resultando o conhecimento que fundamenta uma melhor opinião.
Um Primeiro Passo
Ante esse cenário complexo, algo a ser feito mais de imediato? Sim, há um primeiro passo com repercussões favoráveis, evidenciado por um histórico recente. Não por mera coincidência, temos observado uma piora substancial nos segundos mandatos conferidos por reeleição, conseguindo superar o ruim que foi o anterior.
O caso do Rio de Janeiro é bem ilustrativo.
O prefeito César Maia encerrou um primeiro mandato marcado pela má administração, inclusive na área da saúde conforme apontado pelas pesquisas pré-eleitorais. Reeleito em primeiro turno com expressiva votação, incorporou o recado das urnas expondo a fragilidade da opinião do eleitor, pelo que se permitiu renegar até mesmo a imagem de gestor competente cultivada ao longo da carreira política. Na área da saúde, manteve o absolutamente inoperante secretário, levou os hospitais municipais ao caos, e deu demonstrações dos seus fundamentos.
Assim ocorreu no início de 2006, pela solenidade realizada no auditório do Hospital Municipal Souza Aguiar com a presença do Ministro da Saúde, para o anúncio do repasse de verbas para o Município. A solenidade foi realizada em um dia particularmente quente no Rio – 37,5ºC pelo termômetro, bem mais pela sensação térmica –, estando o sistema de refrigeração com defeito havia pelo menos quinze dias, comprometendo inclusive o funcionamento da emergência e do centro cirúrgico. No auditório, no entanto, o clima era ótimo. Não só pelo propósito da solenidade, como também pelos dez aparelhos de ar condicionado alugados especialmente para o evento – demonstração inequívoca de uma perspectiva distorcida do trato da coisa pública, onde uma solenidade se sobrepõe ao funcionamento do serviço.
No âmbito estadual, também reeleito com facilidade, o governo dos Garotinho não renegou a sua política de compensar más práticas com ações assistencialistas de caráter eleitoreiro. Tendo recebido das urnas o mesmo recado dado ao prefeito, também conseguiu piorar no segundo mandato, em todos os sentidos. Tomando a saúde mais uma vez como exemplo, o governo estadual se nivelou ao municipal e ao federal, por baixo, demonstrando coerência da percepção dos políticos quanto à opinião do eleitor.
Finalmente, no âmbito federal o governo Fernando Henrique também confirmou a predominância de um segundo mandato ainda pior, não obstante tudo o de ruim ocorrido no primeiro, como por exemplo, nas privatizações e nas negociações com o Congresso para aprovação da emenda constitucional da reeleição.
Todo esse histórico explicita que a reeleição tem sido um estímulo adicional ao mau trato da coisa pública, por referendar a continuidade de um roteiro: Políticos exercem o poder usando e induzindo as fragilidades da sociedade e das instituições; Contando com a impunidade, renegam às suas promessas e adotam práticas que privilegiam os seus interesses; Acompanhando as pesquisas de opinião e atestando a aquiescência da sociedade – “Fazer o que? É a vida!” –, investem no marketing político, substituindo as realizações pelas ilusões e estimulando o continuísmo; Reeleitos, se vêm fortalecidos nos seus propósitos e nos seus métodos.
Como já visto, a descontinuidade desse roteiro passa pelo investimento na saúde e prática da nossa opinião, para chegar ao fortalecimento das instituições, e essa é uma jornada que demanda tempo. Tanto melhor, então, que se inicie de imediato.
E melhor ainda, se como primeiro passo adotarmos uma ação de efeito a curto prazo, não reelegendo governos como esses que se nos apresentam. Como resultados, não só coibiríamos a repetição em dose pior, como também, mandaríamos um recado para os novos governantes, desestimulando os excessos que estão nos levando a riscos extremos.
Assim constatamos por uma diferença explicitada de forma clara pelos governos Fernando Henrique e Lula, quando ao final do primeiro mandato. No primeiro, a transgressão foi praticada com desenvoltura, bem ilustrando a interação dos poderes públicos com a sociedade, motivando uma percepção de corrupção similar à do governo Lula. Mas em nenhum momento foi dado a perceber qualquer intenção de ir além do uso das nossas carências institucionais e da nossa omissão por conta do “Fazer o que? É a vida!”.
Já no governo Lula, ao contrário, as transgressões têm revelado inúmeras demonstrações de total desrespeito pelos mecanismos institucionais, com todas as evidências de uma estratégia de governo fundamentada no uso desmedido do pior do nosso histórico. Por ela, a sociedade estaria suficientemente permissiva para a transgressão plena, aceitando em troca a substituição do “rouba, mas faz” por um “rouba, mas repassa” – repassando pouco, pois a sociedade é barata. Nesse caso, justifica-se inclusive o receio de que a reeleição venha a implicar mais um dos regimes especiais que tanto têm comprometido a nossa evolução como sociedade.
Os coadjuvantes
Relacionando os agentes da prática médica aos atores de um filme, deveríamos ter o paciente e o médico como protagonistas, cabendo aos demais – planos de saúde, hospitais, laboratórios de diagnóstico, e a indústria – o papel de coadjuvantes.
No Brasil, esse filme se desenvolve com uma inversão desses papéis.
Governo Omisso, Protagonistas Reféns
As mudanças nas práticas profissionais estão sempre em curso, uma decorrência natural da evolução tecnológica e das transformações nos cenários econômico e social. É uma tendência mundial, cabendo ao governo de cada país responder com a adequação dos modelos de operação, e dos mecanismos de regulação dos agentes envolvidos, o que não se observa no Brasil.
Pelo desinteresse do governo em uma efetiva gestão da saúde, o modelo dos serviços acaba se estabelecendo segundo as conveniências daqueles agentes que seriam os coadjuvantes, sendo operado sem a efetiva participação das agências reguladoras correspondentes. Dessa forma, não só os protagonistas, como também o próprio governo, ficam reféns daqueles agentes. Pior ainda, tudo isso em um cenário Brasil que induz às más práticas.
Um caso bastante ilustrativo ocorreu em maio de 2006, quando a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) divulgou o estágio dos trabalhos para registro das operadoras de planos de saúde, então estimadas em cerca de 1.100 empresas, atendendo a aproximadamente 36,9 milhões de brasileiros. A imprecisão dos números, ainda segundo a ANS, se deveu a possíveis equívocos nas informações já obtidas junto a 200 das operadoras, e ainda, ao atraso das demais quanto à entrega da documentação, descumprindo três prazos estabelecidos para tanto – junho e dezembro de 2005; março de 2006. Mais ainda, os nomes das empresas em atraso não foram divulgados pela ANS, desconsiderando o risco de um brasileiro contratar os serviços de uma operadora incapacitada ou com más intenções.
Considerando que o sistema de serviços públicos de saúde está falido, o menor dos sensos de responsabilidade do governo implicaria receio de problemas com as operadoras. Ainda assim, acontecem casos de quebra que aparentemente tomam o governo de surpresa, deixando milhares de brasileiros sem assistência de saúde. No entanto, bastaria monitorar as reservas financeiras que se fazem necessárias para custear a operação do negócio, podendo ainda, como ação preventiva de longo prazo, monitorar a capacitação operacional no sentido de detectar inadequações que evidenciem problemas em gestação. E finalmente, bastaria até mesmo dar uma olhada nas instalações das operadoras, detectando aberrações que evidenciem problemas já instalados. Reforçando essa obviedade, já ocorreu a quebra de uma operadora cuja sede ocupava uma pequena casa em ruínas, segundo foto publicada na imprensa.
Toda essa complexidade está a nos desafiar, afinal, a saúde é o nosso bem maior, e no sentido de preservá-la, de alguma forma estamos ou estaremos usuários dos serviços de saúde. Ocorre-me então perseverar no propósito do chamamento à reflexão desses coadjuvantes de importância fundamental, complementando o relatado no meu caso médico com algumas outras questões que também me parecem úteis para um melhor desempenho.
Planos de Saúde
A produção dos serviços de uma operadora de planos de saúde se dá através da intermediação das ofertas dos credenciados – médicos, hospitais e laboratórios –, com as demandas dos pacientes. Como todo negócio com esse perfil, a rentabilidade está intimamente condicionada ao investimento em capacitação operacional, assegurando produtividade e apurado controle para coibir fraudes. Essa capacitação absorve a operação em escala, propiciando resultados favoráveis mesmo com pequenas margens de remuneração dos serviços, o que por sua vez propicia políticas comerciais competitivas.
Isso é viável, e todos saem ganhando – investidores, gestores, empregados, credenciados e clientes. O problema é manter o foco da gestão do negócio voltado para aqueles propósitos, evitando desvios por conta das más práticas incentivadas pelo cenário Brasil.
Prestando serviços de consultoria tive oportunidade de observar um exemplo absolutamente representativo desse desvio, em uma empresa que operava negócio de perfil similar e era controlada por uma operadora de planos de saúde.
Antes do investimento em capacitação, o faturamento mensal da empresa girava em torno de R$ 1 milhão, sendo olhada com um certo desdém pela controladora. Empossada uma executiva com arrojo e visão estratégica do negócio, teve início o trabalho que foi desenvolvido continuamente e se complementou em dois anos, ao final dos quais os resultados se revelaram muito acima do esperado, provendo uma competitividade que alavancou o faturamento mensal para R$ 45 milhões e levou a empresa a ser considerada como referência. Representava o investimento modelo do capitalismo, remunerando o capital e incentivando a renda e o emprego, uma vez que os resultados favoráveis permitiram aumentos salariais, e a expansão do negócio implicou quadruplicar o número de funcionários.
E então aquele caso de sucesso fomentou um problema fatal. A empresa controladora, à época bastante enrolada em decorrência das suas más práticas, cedeu á tentação daquele caixa da controlada, e interveio. Inadequada para os novos tempos, a executiva responsável pelo crescimento foi afastada, assumindo um executivo que trouxe consigo as más práticas da controladora. Toda aquela capacitação que rendera excelentes resultados, agora usada com outros propósitos, não mais tinha utilidade. Foi uma questão de tempo, e repetiram-se as conseqüências já observadas na controladora: credenciados e fornecedores sem receber; clientes sem atendimento; muitos funcionários demitidos sem recebimento dos seus direitos.
Alguns poucos funcionários, cooptados para ajudar nas más práticas, foram compensados com vantagens provisórias, que não lhe asseguraram tranqüilidade ante as dificuldades posteriores de recolocação no mercado de trabalho. E finalmente, alguns muito poucos – a família proprietária e um seleto grupo de gestores – ficaram muito bem de dinheiro, e impunes.
Ainda a respeito da capacitação operacional das operadoras de planos de saúde, o sítio Monitor das Fraudes (www.fraudes.org) estima que 25% dos pagamentos autorizados pelas operadoras correspondem a fraudes cometidas pelos credenciados. A mais comum se dá pela informação de serviços que efetivamente não foram realizados em consultas, entre os quais, o atendimento de um associado quando na verdade o atendido foi um seu parente ou amigo, não cadastrado no plano.
A altíssima incidência do problema denota a falta de investimento em capacitação operacional, restando a dúvida quanto às motivações para tanto. E explicita também, como as más práticas de alguns implicam prejuízos para todos.
Um outro problema que decorre do modelo apoiado nos planos de saúde, diz respeito ao tempo de quinze minutos nas consultas com os médicos credenciados, por conta do reduzido valor de remuneração correspondente. Na teoria essas consultas rápidas seriam factíveis, por fundamentadas em laudos conclusivos dos exames realizados em laboratórios de medicina diagnóstica. Na prática, podemos observar o acréscimo de dois fatores de risco. O primeiro, pela possibilidade de fadiga física e mental do médico credenciado, considerando o grande número de atendimentos que se fazem necessários para uma remuneração compensadora, podendo alcançar mais de setenta consultas em um único dia.
O segundo fator de risco se dá pela possibilidade de uma lacuna no atendimento ao paciente, uma vez que os laboratórios, tal como os médicos credenciados, trabalham segundo uma abordagem de produção em escala, como ilustra um exame a que foi submetido o Dr. Referência, relatado mais adiante. Estabelece-se então o risco de que nenhuma das partes atendentes interprete de forma própria as imagens e números produzidos no exame, que devem ser avaliados segundo as especificidades do paciente, considerando as condições do seu organismo e histórico.
Hospitais e Laboratórios de Medicina Diagnóstica
Não raro, as decorrências da inversão de papéis entre protagonistas e coadjuvantes se traduzem em números. Por exemplo, com respeito à disparidade da remuneração dos médicos vinculados aos agentes, beneficiando os que exercem cargo executivo em detrimento daqueles dedicados à prática médica.
Em uma internação hospitalar para antibioticoterapia, eu viria a me dar conta dos prejuízos daquela disparidade para os pacientes. Em contraste com diversos atendimentos falhos em decorrência de problemas de gestão – no caso, sob a responsabilidade de uma médica –, fui surpreendido com a excelente assistência de uma outra médica, a clínica que acompanhava os pacientes internados. Logo após a minha alta essa última viria a trocar de emprego, seduzida pela indústria farmacêutica. Não obstante implicando mudança de residência para um outro estado, a troca se dera não só pela proposta de trabalho como também pela remuneração oferecida, muito boa em termos absolutos, e muito mais ainda em termos relativos, pelo pequeno salário que recebia no hospital.
Um traço que pode ser considerado comum aos hospitais e laboratórios, e até mesmo aos planos de saúde, diz respeito a uma significativa incidência de médicos em cargos executivos, com atuações em áreas que implicam domínio de conhecimentos específicos, não contemplados nos programas dos cursos de graduação em medicina, e também não exercitados na prática médica. Em algumas situações ocorridas ao longo do meu caso médico os naturais comprometimentos dessa disfunção se fizeram presentes, particularmente quanto aos processos de produção dos serviços e aos fatores de produção relacionados, em destaque a tecnologia e a força de trabalho.
Curiosamente, os médicos-gestores nem mesmo asseguraram os cuidados básicos com a adequação do uso daqueles fatores de produção às especificidades da prática médica, cuidados esses que um especialista em gestão atentaria recorrendo à experiência dos próprios médicos.
Em algumas situações, no entanto, os problemas de qualificação da força de trabalho estão associados à estratégia estabelecida para o atendimento em escala, como denota o ocorrido com o Dr. Referência ao se submeter a um exame em laboratório de medicina diagnóstica.
Atendido sem recorrer a qualquer apresentação, ele foi colocado em uma sala, onde ficou aguardando na companhia de um aparelho fabricado pela Siemens. Um bom tempo depois entrou a responsável pelo exame que, dispensando cumprimentos e perguntas, logo tratou de instalar os eletrodos que se faziam necessários. Ante toda aquela automação do atendimento, o Dr. Referência perguntou se deveria chamá-la de Dra. Siemens, uma vez que ela parecia uma extensão do aparelho com que convivera em silêncio enquanto aguardava. Complementou então, perguntando quem lhe faria as perguntas básicas daquele atendimento, uma vez que ele tinha nome, histórico e um quadro que motivava o exame a ser realizado. Afinal, o laudo esperado de um laboratório de medicina diagnóstico está condicionado à interpretação de imagens e números produzidos por uma máquina, e sem o conhecimento daquelas informações do paciente, essa interpretação pode ficar comprometida.
Esse episódio nos revela que a fantástica evolução dos recursos da medicina pode se fazer acompanhar de uma involução do seu uso, assim como também ocorreu quando o Dr. Gerência relevou o planejamento de uma complexa cirurgia, não obstante reconhecendo a precisão da ressonância magnética na delimitação da área atingida pelo tumor, pelo que previu todos os procedimentos.
Indústria
A organização não-governamental Médicos Sem Fronteiras avalia em US$ 100 bilhões o investimento anual em pesquisas médicas no planeta, o que bem ilustra a dimensão dos valores movimentados no mercado de medicamentos, materiais e equipamentos. Ocupado por organizações industriais de porte compatível com os valores movimentados, esse mercado também se caracteriza por grande competitividade, naturalmente implicando agressiva atuação comercial daquelas organizações. Já nada natural, mas sim preocupante, é a evolução dos casos que denotam atuações comerciais comprometedoras da prática médica.
Trata-se de um fenômeno observado em vários países, porém, pelos incentivos do cenário Brasil, também na saúde nos colocamos como destaque das más práticas.
Nos Estados Unidos, por exemplo, foi enorme a repercussão da denúncia de uma renomada médica pesquisadora, em meados de 2005, acusando ter recebido proposta de remuneração para assinar um artigo previamente elaborado, que favorecia interesses de uma companhia farmacêutica. Também a agência de fármacos e alimentos daquele país, a FDA (Food and Drug Administration), tem sido questionada pelos médicos quanto à aprovação de medicamentos que se revelaram nocivos.
No que diz respeito ao Brasil, espelhando a promíscua relação que o governo estabelece com a iniciativa privada, o problema assume uma dimensão bem maior. A abordagem dos médicos pela indústria já denota intenções, como ilustrado por um pronunciamento do urologista Jorge Hallak, vinculado à USP de São Paulo, segundo o qual: “Fora do Brasil, a relação dos médicos é com o setor de pesquisas e desenvolvimento da indústria farmacêutica. Aqui no Brasil, quem fala com os médicos é a área comercial, nunca é o pessoal de pesquisa”.
Essa abordagem reflete o que foi colocado por um dos cirurgiões que me assistiram, comentando a sua preocupação com uma proposta de remuneração pelo uso de uma determinada prótese em seus pacientes, admitindo que se tratava de uma prática e não um caso isolado. Um tanto mais tarde, matéria publicada pela imprensa divulgou a grande preocupação que o assunto desperta em diversas entidades representativas da classe médica, como por exemplo, o Conselho Federal de Medicina (CFM), e a Sociedade Brasileira da Clínica Médica, merecendo inclusive pronunciamentos contrários bastante severos por parte dos médicos que dirigem aquelas entidades.
Em uma versão mais ampla divulgada a respeito, os médicos que aceitam as propostas são recompensados de diversas formas – presentes, dinheiro, viagens – e, em troca, receitam remédios do laboratório patrocinador. Na outra ponta, as farmácias, também em troca de recompensas – dinheiro ou produtos –, repassam aos laboratórios copias das prescrições de medicamentos apresentados pelos pacientes, permitindo controlar o cumprimento do acordado com os médicos.
Também são preocupações para aquelas entidades representativas da classe médica, os casos de recompensas comerciais para médicos que fazem apresentações em congressos favorecendo determinados produtos da indústria farmacêutica.
Uma vez conscientes das implicações extremamente danosas dessa péssima prática, e confortados pelas iniciativas contrárias de algumas das entidades representativas da classe médica, devemos ficar atentos às iniciativas das entidades que representam a indústria, no sentido de um código que melhor regule a atuação comercial do setor. E mais ainda, devemos atentar que essa questão é mais um motivador para reposicionamento da sociedade a respeito do tratado em O Cenário Brasil.
Os protagonistas
Médico
Não raro observamos profissionais da medicina que superam as dificuldades impostas pelo cenário Brasil e dão mostras de práticas exemplares. Belos exemplos, motivadores dos propósitos deste livro no sentido de comprovar viáveis as boas práticas.
Em oposição, observamos um preocupante crescimento das más práticas. Maus exemplos, também motivadores deste livro, no sentido do chamamento à reflexão.
Belos Exemplos em um Cenário Adverso
Como demonstrado pelas boas práticas do Dr. Referência e dos demais médicos referenciados pelo nome de sua especialidade, o meu caso médico comprova ainda possível a superação dos problemas impostos pelo cenário Brasil, assim como também o fazem alguns dos casos divulgados pela imprensa. Entre estes últimos, observamos inclusive o uso das circunstâncias favoráveis em benefício da sociedade, até mesmo no que diz respeito à institucionalização, propiciando resultados com reconhecimento que extrapolam as nossas fronteiras.
É o caso do trabalho realizado pelo Dr. Aloysio Campos da Paz, médico responsável pelo projeto da rede de hospitais Sarah, referência na reabilitação cerebral e motora, com cuidados especiais dispensados aos pacientes infantis. Os resultados bastante favoráveis do projeto foram inclusive reconhecidos pela Academia Americana de Cirurgiões Ortopédicos, levando à menção do Dr. Aloysio como um dos principais especialistas do mundo.
O fundamento de tanto sucesso pode ser percebido em uma entrevista concedida pelo renomado médico a um canal de notícias da televisão: Perguntado sobre a menção dos americanos, respondeu considerá-la como honra institucional, uma vez que tinha dedicado sua vida à prova de ser possível constituir uma instituição no Brasil, o país do Macunaíma, o país onde o personagem de destaque é um anti-herói; Comentando sobre os resultados da rede Sarha, citou considerá-los um sucesso da cidadania – destacando os serviços em retorno aos impostos recolhidos, e se colocando como servidor público e não como funcionário público –, e mais ainda, considerá-los exemplos que comprovam a possibilidade da boa prática, devendo motivar médicos e pacientes; Perguntado sobre como lidar com a frustração em casos de insucesso, falou da comunhão do médico com o paciente e revelou, de forma contida, a emoção que caracteriza o seu envolvimento profissional.
Ainda na entrevista, o Dr. Aloysio citou ter contado com as circunstâncias, reconhecendo-as e agradecendo. Entre elas, o incentivo da Sra. Sarah Kubitschek, então primeira-dama, motivada pelo grave problema de coluna enfrentado pela sua filha Márcia no início dos anos sessenta, logo nos primeiros anos de Brasília.
Tratou-se de uma circunstância muito favorável que poderia ter sido usada em outro sentido, como por exemplo, em benefício individual ou de um grupo, como cada vez mais assistimos no Brasil. No entanto, pelos seus propósitos como médico e cidadão, o Dr. Aloysio veio a optar pela instituição, inclusive sem qualquer preocupação de desviar para si o foco do sucesso obtido – antes de assistir à entrevista eu estava informado a respeito do trabalho da rede Sarah, e desconhecia o Dr. Aloysio.
Além de um belíssimo exemplo de sucesso na prática médica, o trabalho do Dr. Aloysio é também exemplo de que, mesmo na terra do anti-herói Macunaíma, a competência no trabalho pode render belíssimos resultados, e também, ser muito bem reconhecida.
O Outro Lado e as Suas Motivações
Problemas na prática médica extrapolam em muito o observado no meu caso médico, com uma evolução que repercute de forma significativa no noticiário da imprensa, no crescente volume de ações judiciais, e nos movimentos das entidades de representação da classe médica.
A incidência maior diz respeito a problemas que se configuram como indução do cenário Brasil às más práticas, o que ocorre por uma mera questão de uso das nossas carências institucionais, levando alguns profissionais a excessos pelo espelhamento e pelo sentimento de impunidade, ocorrendo ainda por conta de condições impróprias para o exercício da profissão, motivadas por múltiplas causas: falhas no processo de formação acadêmica; falta de investimento em infra-estrutura; interferência na prática médica por parte dos agentes relacionados; omissão do Estado na regulação e no controle do modelo dos serviços de saúde.
Reforçando, esses são os problemas que representam custos adicionais à nossa sociedade pela prevalência do flerte com a transgressão.
Também significativa é a incidência de problemas por conta das transformações diretamente relacionadas à prática médica, elevando em muito os requisitos para o seu sucesso. Neste caso as evidências colocam em destaque as transformações determinadas pela dinâmica da evolução dos recursos da medicina – técnicas cirúrgicas e clínicas, materiais, equipamentos e medicamentos –, elevando o nível de exigência da especialização médica e impondo a necessidade de equipes multidisciplinares para o tratamento de enfermidades mais complexas.
Em conseqüência, diversos desafios se estabelecem não só para os profissionais da medicina, como também para as entidades educacionais afins e as de representação de classe, em destaque: Uma formação médica com maior ênfase quanto às habilidades para o trabalho em equipe, o planejamento e a gestão do tratamento; A atualização continuada quanto à evolução dos recursos da medicina, assim como o permanente compartilhamento da experiência na utilização dos mesmos, não só no sentido de assegurar o sucesso pelo uso próprio, de uma forma adequada, como também, no sentido de evitar a repetição de insucessos.
Assim sendo, e considerando que o meu caso médico espelha todos esses problemas, justifica-se o relato factual do caso aqui apresentado em detalhes, objetivando o envolvimento de todos aqueles desafiados pelas causas e efeitos dos problemas havidos.
O paciente
As inúmeras composições de todos os elementos inerentes aos organismos vivos remetem à questão da diversidade dos indivíduos, e no homem, pela sua fantástica psique – a alma, segundo os sábios gregos da antiguidade –, aquela questão se estabelece como singularidade. Por singulares, tendemos a percepções próprias sobre aquilo que nos cerca. Mais ainda – e de novo os sábios gregos –, existe a influência das circunstâncias. Dito de outra forma, uma mesma experiência tende a assumir diferentes significados e dimensões para aqueles que a vivenciam, considerado inclusive o momento em que ocorrem.
Sensato se faz, portanto, resistir à tentação de universalizar uma experiência, e assim farei evitando o estabelecimento de recomendações-padrão para aqueles que se defrontam com a enfermidade. Ainda assim, perseverando no interesse em contribuir, me ocorre complementar o relatado no caso médico com algumas questões que podem ser úteis em tratamentos mais complexos, mantido o propósito do chamamento à reflexão.
Prevenir é o Melhor
Mais uma vez recorrendo ao publicado por Antonio Damásio em Em Busca de Espinosa, todos os organismos vivos dispõem de um equipamento inato e automático do governo da vida – a máquina homeostática – que soluciona automaticamente, sem qualquer raciocínio prévio, os problemas básicos da vida: encontrar fontes de energia; incorporar e transformar energia; manter, no interior do organismo, um equilíbrio químico compatível com a vida; substituir os sub-componentes que envelhecem e morrem de forma a manter a estrutura do organismo; e defender o organismo de processos de doença e de lesão física. A palavra homeostasia descreve esse conjunto de processos de regulação e, ao mesmo tempo, o resultante estado de vida bem regulada.
No sentido de resguardar esse estado, todas as ações úteis estão relacionadas a uma única palavra: prevenir – pela adequação dos seus diversos significados.
Prevenir é “evitar, dispor de maneira que evite dano”, um significado voltado para a permanência que estabelece dois requisitos fundamentais.
O primeiro deles diz respeito à consciência e à efetiva prática dos cuidados do indivíduo com a preservação da sua máquina homeostática. Não obstante a farta divulgação a respeito do assunto por parte dos órgãos da imprensa, a efetiva incorporação não se dá de forma plena, uma decorrência natural das dificuldades de entendimento por parte de pessoas em plena homeostasia, sem nenhuma referência própria a respeito dos danos a esse estado. Essa dificuldade é observada mais acentuadamente entre os jovens, implicando maior possibilidade que os problemas de amanhã estejam sendo gerados hoje – e não há volta no tempo. Ocorre-me então que a conscientização dos cuidados com aquela preservação é um tema relacionado à educação, a ser contemplado nos bancos escolares.
O segundo dos requisitos da permanência diz respeito à disponibilidade dos recursos que a apóiam, em particular alimentação, habitação e acesso à medicina preventiva. Entendo que esta disponibilidade está em risco para a classe média, e comprometida para a mais desfavorecida, remetendo ao tratado em O Cenário Brasil.
Mais ainda, prevenir é “antecipar-se, tomar a dianteira”, um significado da maior valia para permitir tratamento ainda no estágio inicial do problema, evitando a evolução do mesmo para níveis mais críticos.
Neste caso, o contínuo acompanhamento de um médico clínico se faz importante, possibilitando a este profissional uma grande contribuição para um diagnóstico mais rápido e preciso ante os primeiros sintomas de problema. Assim ocorre pelos seus conhecimentos a respeito do histórico e das particularidades do organismo do paciente, aí considerados inclusive o funcionamento sistêmico e os sintomas psicossomáticos.
Em complemento, um paciente atento e diligente facilita em muito esse diagnóstico. Um caso bastante ilustrativo diz respeito a uma grande amiga acometida de um câncer no intestino, que se viu livre dele após cirurgia realizada ainda no estágio inicial. Quando jovem essa amiga não havia se acomodado com uns leves sintomas de mau funcionamento do seu intestino, resolvendo a inconveniência após tratamento e mudanças alimentares. Muitos anos depois, ante sintomas bem similares àqueles anteriores, mas agora por conta do tumor, logo veio a realizar exames que o acusaram ainda em condições próprias para a erradicação. Não tivesse resolvido o problema apresentado quando jovem, teria se acostumado a conviver com aqueles leves sintomas, e muito provavelmente não teria atentado para as mensagens do seu organismo acusando o novo problema, comprometendo o diagnóstico em tempo hábil.
E finalmente, prevenir é também “interromper, cortar”, um significado que remete aos cuidados que assegurem o mais rápido restabelecimento quando na enfermidade. O relato do meu caso médico bem ilustra o ônus pela desatenção com esses cuidados, motivando o complemento que se segue nesse capítulo.
Ocorre-me por último observar como inadequado o entendimento de que a prevenção se restringe a uma contínua e angustiosa busca da doença. Considerando a vida normal diretamente relacionada ao estado de vida bem regulado, devemos usar este estado de forma prazerosa, continuamente, com o cuidado de monitorá-lo no sentido de assegurar permanência.
Reconhecendo a Enfermidade
Uma vez enfermo, o paciente se defronta com a ruptura do estado de vida bem regulada, implicando alguma fragilidade. A dimensão e a composição, aí consideradas as repercussões físicas e mentais, serão determinados pelas circunstâncias, mas a fragilidade se estabelecerá e trará consigo os dois primeiros desafios a serem superados, dizendo respeito ao reconhecimento do problema e da necessidade de ajuda.
Entendo que o primeiro passo para a resolução de um problema é o seu reconhecimento, sem o que tendemos à negação ou à negligência, alimentando o inimigo. Assim, antes de tudo o paciente deve se admitir enfermo, – predispondo-se a estar, e não a ser –, o que estimula a mobilização do melhor de si para o enfrentamento.
Uma vez admitido o problema, faz-se ainda necessário reconhecer que a ajuda necessária para a solução vai além da fundamental participação dos cirurgiões, envolvendo ainda um médico clínico e uma pessoa das relações do paciente – da família ou do círculo de amizades.
Quanto ao clínico, melhor ainda se for aquele que assiste o paciente em termos de medicina preventiva, o que facilita a avaliação da propriedade dos tratamentos cirúrgicos propostos e do encaminhamento daquele escolhido, consideradas as repercussões no organismo do paciente.
Já quanto à ajuda de uma pessoa próxima, cabe lembrar que por maiores que sejam as habilidades do paciente quanto a discernir, questionar e negociar, não é fácil exercê-las quando se trata do encaminhamento do próprio tratamento, principalmente aqueles mais complexos e duradouros, consideradas as questões emocionais envolvidas. Bem verdade que, neste caso, se coloca a questão da emotividade da pessoa escolhida: pode ser que ela não ajude se muito emotiva; e também não se nada emotiva.
Escolhendo o Cirurgião
Pelas circunstâncias em que ocorre, essa escolha já se reveste de uma natural complexidade. E mais ainda quando tratada com urgência, por conta de diagnósticos tardios, situação em que o paciente se vê mais pressionado na busca da solução, implicando maiores riscos. Assim admitindo, reforçamos os benefícios com o prevenir no sentido de “antecipar-se, tomar a dianteira”.
Posto a pensar sobre um critério para a escolha do cirurgião resgatei da memória uma piada. Nela, um pai coloca que quando ainda solteiro e sem filhos tinha quatro teorias de como criá-los, e agora, casado e criando quatro filhos, não tem mais nenhuma teoria a respeito. Trocando quatro filhos por vinte e uma cirurgias, e criação por critério de escolha do médico, o resultado é mesmo – nenhuma teoria.
Os critérios que conferem renome aos cirurgiões não bastam, e mais ainda, o sucesso da escolha depende não só da competência do médico, como também da disponibilização desta para a resolução do problema. Fiquemos então conscientes da importância de evitar urgência no encaminhamento do assunto, de contar com a ajuda de um médico clínico e uma pessoa próxima, e ainda, da utilidade de alguns cuidados adicionais que se fazem indispensáveis para os casos mais complexos.
O primeiro deles diz respeito ao maior nível de informação possível sobre o médico, seus resultados anteriores em cirurgias similares, e suas proposições para a solução do caso.
Como relatado em Apagando o Incêndio / Preliminares, acabei cedendo à indesejada urgência quando me informando a respeito de cirurgias anteriores do Dr. Emblema. Mais adiante, conclui que deveria ter tentado o contato com a paciente retratada em foto disponibilizada pelo médico. Essa disponibilização é polêmica, sendo condenada por alguns dos Conselhos Regionais de Medicina em função de maus exemplos do seu uso, tendo ocorrido até mesmo catálogos de fotos retocadas. Já quanto ao contato entre os pacientes, não tenho informação sobre qualquer posição contrária, e me parece ser conveniente. Como benefício, além das informações sobre cirurgias anteriormente realizadas pelo médico, há ainda a troca de experiências entre pessoas que compartilham problemas por conta de uma enfermidade comum.
A propósito, esse compartilhamento cabe perfeitamente como uma aplicação dos recursos disponibilizados pela Internet para as comunidades virtuais.
Um segundo cuidado na escolha do cirurgião implica observar a atenção por ele dedicada ao planejamento de uma prestação de serviços que, na maioria dos casos, requer a utilização de vários recursos – equipamentos, instrumentos, medicamentos, e humanos –, com diferentes propósitos, em diferentes momentos, com diferentes reações. Tudo isso atuando sobre o mais complexo sistema produzido pela natureza, com o único propósito do restabelecimento, sem acrescer quaisquer danos adicionais por conta de problemas na execução do serviço.
Por tanto a omissão do planejamento potencializa os riscos, porém, ainda assim essa atividade pode ser relevada pelas partes envolvidas segundo motivações distintas. Entre os pacientes, a natural ansiedade que decorre do seu estado induz à precipitação de relevar os cuidados preliminares.
Já entre os médicos, ocorrem motivações diversas que se concentram em distintas situações. O relato do meu caso médico explicita dificuldades na administração do tratamento, como demonstrado pelo Dr. Gerência, e ainda, o interesse em não precisar os serviços deixando margem a encaminhar o tratamento segundo uma abordagem predominantemente comercial, como demonstrado pelo Dr. Emblema. Debatendo o assunto com alguns médicos, foram aventadas motivações por falhas no processo de formação acadêmica, e ainda, por atitude reativa perante um maior nível de informação dos pacientes.
Por último, como terceiro dos cuidados adicionais na escolha do cirurgião, é importante também conhecer os demais profissionais da equipe, sem interferir na responsabilidade do cirurgião chefe quanto aos resultados do trabalho. Esse conhecimento deve, inclusive, atestar se estão contempladas todas as especialidades médicas necessárias para o caso, evitando riscos por conta de atuações que extrapolem a área de competência dos componentes da equipe.
Dedicando-se ao Enfrentamento
A paciência não foi o único instrumento a que recorri durante o meu longo caso médico. Mobilização, força, discernimento e entretenimento se revelaram de importância fundamental.
Mobilização:
Uma vez enfermo, podemos nos admitir tão somente fragilizados, o que se justifica pelo comprometimento do estado de vida bem regulado. Mas podemos também nos sentir desafiados, pelo compromisso em restabelecer aquele estado. Assim ocorreu no meu caso, justificando que ao longo de todas as adversidades ocorresse permanente mobilização voltada para a superação.
Essa permanência também veio a ser cultivada em função da perspectiva com que enxerguei alguns fatos ocorridos ao longo do tratamento, como por exemplo, em Alimentando o Fogo / Uma Memória Alentadora, quando fortuitamente não prevaleceu o risco de uma perspectiva mais pessimista por conta do quadro da enfermidade. Esse risco justifica a recomendação de que o paciente não ceda a uma primeira impressão desfavorável a respeito do que se lhe apresentar, questionando-a pelo confronto com reavaliações segundo outras perspectivas.
Pelo longo prazo do tratamento, pude inclusive me dedicar a um aprendizado do melhor uso da mobilização. Antes de tudo, no sentido de evitar que a sua permanência me restringisse aos pensamentos e às ações que dizem respeito ao tratamento, incorrendo risco do esgotamento.
Manter o foco da mobilização direcionado para o restabelecimento também foi objeto daquele aprendizado, no sentido de evitar a dispersão com ações não alinhadas com aquele propósito, mesmo que relacionadas ao tratamento. Mais ainda, me mantive atento para evitar novos danos por excesso ou descuido nessa mobilização, já bastando os muitos problemas causados pelo tratamento.
Força:
Uma atitude de mobilização perante o desafio já reflete força, porém, muito mais desta se faz necessário para um árduo e longo enfrentamento. No caso, essa força não se traduz em músculos, mas sim em vigor da mente e do organismo, propiciando maior tolerância nos inevitáveis momentos de sofrimento, maior lucidez durante o árduo convívio com a situação adversa, melhor reação do organismo para se recompor da enfermidade, e ainda, manter acesa a chama que alimenta a superação.
Dediquei-me continuamente para assegurar o vigor e a permanência das minhas forças, recorrendo aos meios que me são próprios, como por exemplo, a interação com a Natureza tal como tentei expressar através do escrito Força (Em Busca do Envolvimento / Cirurgias Três e Quatro – Percepções e Constatações). Exclusive em momentos absolutamente impeditivos, mantive as minhas idas à praia pela manhã ainda cedo, algumas vezes correndo com limitações, outras caminhando, ou ainda, na impossibilidade dessas opções, somente para colocar os pés na areia e me disponibilizar para a brisa.
Também bebi em outras fontes, em particular o afeto, a música, a leitura, a consolidação de um método voltado para a produtividade dos serviços, e o projeto deste livro.
Esses meios atenderam no meu caso, e creio que possam ser úteis em outros, sendo recomendável que cada pessoa identifique os que lhe são próprios. Recomendo inclusive aproveitar esses momentos de adversidade para uma maior identificação com a individualidade, uma vez que essas ocasiões nos permitem saudável abstração dessas mensagens externas que estabelecem valores de conveniência das suas fontes, dando chance àqueles valores endógenos que se fazem indispensáveis nos momentos de superação, mas também para os que se seguem em uma vida mais normal.
Discernimento:
Ao contrário do verbalizado por um médico ao longo do meu tratamento – “Desculpe William, mas o paciente não tem que pensar nada” –, entendo que este existe, logo pensa. E mais, é indispensável que o faça.
É o paciente quem sente as causas e os efeitos do que ocorre durante o tratamento, o que lhe permite o exercício de estabelecer relação entre aqueles elementos. Colocados para avaliação do médico, os resultados desse exercício contribuem para um diagnóstico mais próprio, uma vez que traduzem as reações orgânicas e psíquicas específicas daquele paciente, naquelas circunstâncias – possibilitando o direcionamento da prática médica para o indivíduo.
Faz-se então indispensável pensar, avaliando as ocorrências do tratamento com discernimento, para o que muito ajuda o nível de informação do paciente a respeito das características da sua doença e da evolução do seu estado. Quanto a esta evolução, tanto melhor que hoje já se observa prevalecer entre os médicos uma atitude de valorizar a informação, em alguns casos específicos disponibilizada para os familiares. Quanto às características da doença, recorri a todas as fontes possíveis, inclusive a Internet, mantendo a consciência de que estar bem informado não significa ter domínio a respeito do assunto, o que cabe ao médico pelos conhecimentos incorporados ao longo do seu processo de formação.
Melhor informado o paciente apura o seu discernimento, qualificando a sua participação no encaminhamento do tratamento, com exposições mais claras, críticas e posicionamentos mais próprios, e com maior possibilidade de observar eventuais omissões e percepções indevidas por parte dos médicos, evitando a adoção de soluções impróprias e de danos desnecessários.
Os benefícios decorrentes do discernimento em muito justificam os cuidados a respeito, reforçando inclusive a relevância da ajuda prestada ao paciente por alguém que lhe seja próximo.
Entretenimento:
Quando enfermos poderemos nos defrontar com restrições, e até mesmo impedimento, de diversas das formas de entretenimento da mente, implicando riscos maiores de esgotamento.
Sorte poder contar com aquelas formas que pouco exigem além da atenção, retribuindo com uma intensa e saudável ocupação da mente, que então estimulada nos transporta sem limitações de espaço e tempo, em viagens de valor inestimável. Muito mais naqueles momentos de enfermidade, não no sentido da fuga, mas sim de um desprendimento temporário para escoar as tensões, incorporar o saber, exercitar a sensibilidade e a percepção, após o que retornamos mais revigorados.
Nesse sentido, a leitura e a música desempenharam um papel fundamental durante todo o meu caso médico.
Ao longo do tempo muito do nosso melhor vai sendo jogado em uns cantos da mente, e poucos são os recursos que dispomos para resgatar esse melhor. Um deles é a música, linguagem de comunicação direta com os nossos sentimentos, que resgata o nosso melhor e o revigora através de fantásticas viagens.
A música clássica assim opera, o que justifica a longevidade de suas composições, tantas vezes ouvidas sem quaisquer sinais de esgotamento, justificando também o enorme sucesso nos empreendimentos que levam essa música às nossas comunidades mais carentes, não obstante o distanciamento anterior das pessoas com relação ao assunto.
Wagner, Beethoven e Rachmaninov foram companhias de extrema valia durante o meu caso médico, porém, os benefícios da música durante a enfermidade não se esgotam nos clássicos, tanto que aqueles autores se fizeram acompanhar dos Rolling Stones e do Pink Floyd, entre outros. Aqui também me ocorre a recomendação do que seja próprio ao paciente, ou seja, a música que mais lhe sensibiliza.
Apêndices
Histórico do Tratamento Clínico/Cirúrgico
30/04/01 - Cirurgia 6
- Retirada do tumor, inclusive parede anterior do antro maxilar e nervo infra-orbitário
- Colocação de duas placas de titânio para suporte implantação do retalho
- Implante de retalho retirado do braço direito, em procedimento microcirúrgico
O parafuso de fixação de uma das placas adentrou a boca durante o ato cirúrgico, passando a ser sentido no pós-cirurgico em atrito com a mucosa - uma dor aguda que foi diagnosticada como um ponto ainda não cicatrizado.
O implante do retalho preencheu parcialmente o seio maxilar, e não proveu comunicações próprias para o escoamento da secreção que veio a se formar nos espaços não ocupados.
11/06/01 - Início da radioterapia No final desse mês foi constatado que o tecido em volta do parafuso havia cedido, abrindo uma grande comunicação cavidade oral/seio maxilar
15/07/01 - Pneumonia (debelada com antibiótico)
18/07/01 - Fim da radioterapia
25/08/01 - Cirurgia 7
- Retirada da placa cujo parafuso havia adentrado a boca
- Curetagem do seio maxilar
- Retirada de parte do excesso do retalho transplantado do braço para o rosto
Uma vez que esta segunda cirurgia foi realizada apenas um mês após o encerramento da radioterapia, houve substancial perda óssea com retraimento do tecido em volta, provocando uma fenda com uma enorme fístula comunicando a boca com o seio maxilar
A segunda placa de titânio continuou instalada, em uma região que passou a produzir muita secreção, transmitindo para o osso (nos parafusos de fixação), todo o material que chegava através da fístula.
10/09/01 - Infecção (debelada com antibiótico e antiinflamatório)
Enorme produção de secreção, que chegou a pressionar os tímpanos nos dois ouvidos
Foi necessário também o uso de colírio com antibiótico, pois a secreção purulenta chegou ao olho através do canal lacrimal
23/10/01 - Cirurgia 8
- Nova tentativa (2ª) de fechamento da fístula (fenda), por “raspagem/cicatrização”, com sutura de retalho da mucosa superior (rebaixando o vestíbulo)
A fístula diminuiu de tamanho
29/11/01 - Cirurgia 9
- Retirada da segunda placa
- Nova tentativa (3ª) de fechamento da fístula, com sutura de retalho da mucosa superior (rebaixando o vestíbulo)
- Não foi feita curetagem
Único pós-cirurgico sem antibiótico preventivo
A fístula não fechou
30/12/01 - Infecção (debelada com antibiótico e antiinflamatório)
07/02/02 - Tratamento do Canino (material no ápice estava em decomposição)
21/02/02 - Cirurgia 10
- Rotação material do palato para a região da fístula
- Nova tentativa (4ª) de fechamento da fístula, com sutura de retalho da mucosa superior (rebaixando o vestíbulo)
- Extraído o primeiro pré-molar
- Curetagem do seio maxilar pelo nariz
- Ampliada a comunicação entre o seio maxilar e a fossa nasal
A fístula não fechou
30/04/02 - Cirurgia 11
- Nova tentativa (5ª) de fechamento da fístula, com sutura de retalho da mucosa superior (rebaixando o vestíbulo)
- Curetagem do seio maxilar pela região da fístula (sugador)
- Ampliada a comunicação entre o seio maxilar e a fossa nasal
A fístula não fechou
03/10/02 - Cirurgia 12
- Fechamento das fístulas (2) com rotação de retalho da mucosa inferior
- Rotação de retalho da testa para reconstrução da asa do nariz
- Rotação de retalho do pescoço para rebaixamento do lábio
Os dois retalhos (testa e pescoço) foram suturados no retalho anteriormente transplantado do braço
25/11/02 - Cirurgia 13
- Retirada do pedículo
13/06/03 - Cirurgia 14
- Aberta comunicação seio maxilar/fossa nasal, com a retirada da parte inferior da parede medial (seio maxilar estava totalmente velado)
- Retirada de partes do etmóide anterior, para liberação de secreção formada nas células etmoidais
- Retirada da cabeça do corneto inferior, para melhor fluidez da secreção
- Curetagem do seio maxilar
Ocorreu uma enorme flebite a partir do ponto de tomada da veia, no braço direito. A aplicação de compressa com água morna gerou uma enorme bolha, com queimadura do tecido que estava fragilizado. Não foi aplicada nenhuma medicação. Falha na cicatrização da região (cicatriz) permaneceu - uma anomalia, se considerada a excelente cicatrização do meu corpo.
Após a cirurgia saiu muita secreção, bastante dura, e ocorreu um grande alívio da tensão/dor na região.
No entanto, a partir da segunda semana da cirurgia, a região voltou a ficar tensa/dolorida e começou um lento processo inflamatório
22/07/03 - Cirurgia 15
- Zetaplastia para liberar brida cicatricial gerada pela rotação do retalho da mucosa inferior (cirurgia 7)
Ocorreu um fecaloma, e em decorrências hemorroidal. A aplicação de compressa com água morna queimou todo o tecido da região, que em seguida passou a ficar irritada e com enorme coceira
Na Segunda semana a seguir, a região do rosto passou também a coçar e aparentar que estava descascando, ficando escura e com celulite
21/08/03 - Diagnóstico catarata de origem medicamentosa (corticóide)
06/09/03 - Retalhos oriundos do braço e da testa inflamados e com celulite
- Tratamento (TN) – até 15/09/03 – Cipro 250 mg, de 8/8horas 10 dias; Banho com Clorohex durante 4 dias; Pomada Bactrobam na região que queimou por conta das hemorróidas
- O tratamento gerou alguma melhora, mas 3 dias após o término voltou ao quadro anterior com evolução gradativa
23/09/03 - Cultura secreção seio maxilar: Staphylococcus aureus (várias); Corynebacterium spp excluído C.diphteriae
01/10/03 - Internação hospitalar para drenagem/curetagem seio maxilar e coleta de material para exame
- Cultura secreção seio maxilar: Staphylococcus aureus (várias); Klebsiella pneumoniae (várias)
08/10/03 - Tratamento para tratar infecção acusada nos exames anteriores
- Internação Clínica Bambina, de 08 a 11/10/03, para administração intravenosa de antibióticos
Dose +- 12 vezes superior ao que foi administrado posteriormente via oral - Administração oral de antibióticos de 11/10 a 30/10/03:
Cipro 500mg 12/12h; Dalacin C 300mg 8/8 h (suspenso em 26/10); Keflex 500mg – 6/6 h
Losec 40 mg 1/dia - Em 30/10/03 o tratamento foi suspenso, por indevido
18/11/03 - Cultura secreção seio maxilar: Klebsiella pneumoniae (várias); Corynebacterium species (várias)
05/12/03 - Cirurgia 16
- Retirada raiz exposta do molar; enxerto de tecido retirado do palato
29/01/04 - Cultura secreção seio maxilar: Serratia marcescens (algumas); Pseudomonas aeruginosa (várias)
16/02/04 - Cirurgia 17
- Ampliação da comunicação seio maxilar/fossa nasal, com a retirada da parte média da parede medial (permaneceu a parte superior)
- Retirada de partes do etmóide anterior, para liberação de secreção formada nas células etmoidais
- Retirada do corpo do corneto inferior (permaneceu a cauda), para melhor fluidez da secreção
- Curetagem do seio maxilar
- Cultura secreção: Pseudomonas aeruginosa (algumas); Serratia mascescens (raras)
- Exame patológico: ausência de neoplasia
13/04/04 - Cultura secreção seio maxilar: Serratia marcescens (algumas); Pseudomonas aeruginosa (algumas); Corynebacterium sp excluído C. diphtheriae (várias)
04/05/04 - Tratamento com Rifocina (antibiótico tópico) - 5 aplicações
Realizadas em consultório, por seringa, diretamente no seio maxilar
08/05/04 - Cultura secreção seio maxilar: crescimento discreto de Streptococcus alfa hemolítico (viridans)
17/05/04 - Tratamento voltado para manifestação alérgica na região
- Allegra (10 comprimidos) e Flixonase Aquoso (cortisona, 1 mês - suspenso antes)
17/06/04 - Tratamento antibiótico: Cipro 500 12/12h durante 3d + Levaquim 500 (Levofloxacino) 12/12h durante 21d
- Cipro por conta de forte diarréia; dias depois o Levofloxacino por conta seio maxilar
- Filmagem em vídeo 12/06/04 acusa muita secreção inclusive perto do olho e do ouvido
30/06/04 - Tratamento para reparo dos ligamentos e tendões do braço direito
(danos por doação de retalho na cirurgia 1 e flebite após a cirurgia 9)
- Em clínica de fisioterapia: Duas séries de 10 seções - Crioterapia + Ultra Som + Cinésio
- Em casa: Continuidade do tratamento durante três meses - Exercícios com elástico
02/08/04 - Cultura secreção seio maxilar: Pseudomonas aeruginosa (Numerosas)
12/08/04 - Cultura secreção seio maxilar: Pseudomonas aeruginosa (Varias); Serratia marcescens (Varias)
16/08/04 - Tratamento com Rifocina (antibiótico tópico) - 5 aplicações
Realizadas em consultório até 26/08/04, por seringa, diretamente no seio maxilar
04/09/04 - Tratamento com aplicação local de solução de ácido acético a 2% diluído em água - até 21/09/04
Aplicação por conta gotas, em casa, em posição própria para alcance do seio maxilar (no início 3 e depois 5 vezes ao dia)
23/09/04 - Cultura secreção seio maxilar: Corynebacterium sp excluído C. diphteriae; Estafilococos coagulase negativa
22/10/04 - Tratamento com aplicação local de ácido bórico (pó) - até 13/11/04
Aplicação por “kit” montado com pêra/sonda. 2XDia nos dias 22, 23, 24/10; 1XDia nos dias 25 a 31/10 e 02, 06, 09 e 13/11
29/11/04 - Cultura secreção seio maxilar: Pseudomonas aeruginosa - 2 colônias distintas (Várias); Staphylococcus aureus (Várias).
02/12/04 - Tratamento com aplicação local de solução de ácido acético a 2% diluído em água + Antibiótico
- Tequim 400 mg - 14 dias
- Ácido acético
Aplicação em casa, por conta gotas, em posição própria para alcance do seio maxilar 2X Dia até 17/12/04
Aplicação em consultório, por seringa, diretamente no seio maxilar: Dias 18, 20, 23, 27 e 30/12/04
08/01/05 - Cultura secreção seio maxilar: Pseudomonas aeruginosa - 2 colônias distintas (Várias e Numerosas)
17/01/05 - Cirurgia 18
- Ampliação plena da comunicação seio maxilar/fossa nasal, com a retirada da parte superior da parede medial
- Retirada plena do corneto inferior, para melhor fluidez da secreção
- Curetagem do seio maxilar
- Exame patológico: ausência de neoplasia
- Internação se prolongou por 7 dias, para administração de antibiótico intravenoso - Meropenem
Pós-cirúrgico com diversas tentativas (11) de sanar problemas com espícula óssea na parede posterior do seio maxilar, sem resultados. Em decorrência, dificuldades de cicatrização e muita secreção purulenta
12/03/05 - Cultura secreção seio maxilar: Staphylococcus aureus (Numerosas)
12/03/05 - Tratamento dos sintomas de osteomielite
Levaquim 500 (Levofloxacino) 8/8h e Rifaldin 300 (Rifampicina) 12/12h
Em 16/03/05, quando divulgado o resultado da cultura da secreção colhida em 12/03/05, acusando a presença de Staphylococcus aureus em contato com osso (espícula óssea), o Levaquim foi substituído pelo Clavulin 500 8/8h, e o prazo do tratamento foi estendido para 6 semanas
16/03/05 - Cirurgia 19
- Desbridamento da parede posterior do seio maxilar, por conta de problemas com espícula óssea
- Exame patológico: ausência de neoplasia
07/04/05 - Cultura secreção seio maxilar: Pseudomonas aeruginosa (Numerosas); Cultura para fungos negativa
13/04/05 - Tratamento dos sintomas de osteomielite
Divulgado nesta data o resultado da cultura da secreção colhida em 07/04/05. A administração de antibióticos passou a considerar: Cipro 500 (Ciprofloxacino) 12/12h e Rifaldin 300 (Rifampicina) 12/12h
O prazo total do tratamento foi estendido para 12 semanas
20/06/05 - Cultura secreção seio maxilar: Pseudomonas aeruginosa (Numerosas)
Antibiograma acusando sensibilidade a antibióticos de administração intravenosa; Ciprofloxacina e Gentamicina
29/06/05 - Tratamento com aplicação local de Ciloxan Otológico (Ciprofloxacino 0,3%)
Aplicação em posição própria para alcance do seio maxilar: 4 gotas 3X dia, durante 10 dias
A mucosa se ressentiu no sexto dia (dor), sendo o tratamento interrompido
16/07/05 - Cultura secreção seio maxilar: Pseudomonas aeruginosa (Numerosas)
Antibiograma acusando: sensibilidade somente a antibióticos de administração intravenosa; resistência a Ciprofloxacina e Gentamicina
20/07/05 - Tratamento antialérgico
Aplicação subcutânea de vacina (uma série de 10 doses)
17/08/05 - Cultura secreção seio maxilar: Pseudomonas aeruginosa (Abundante)
19/08/05 - Tratamento para eliminar secreção
Acetilcisteína (600Mg) - 1/Dia
Sorine H - 5 aplicações/Dia
Soro fisiológico - à vontade, aplicação em “spray” usando recipiente do Sorine H
Sorine H foi suspenso após dois meses, por irritação na mucosa. Tratamento continuou somente com aplicações de soro fisiológico
14/09/05 - Cultura secreção seio maxilar: Pseudomonas aeruginosa (Abundante)
19/10/05 - Cultura secreção seio maxilar: Negativo
27/10/05 - Cirurgia 20
Catarata de origem medicamentosa - olho direito
16/11/05 - Início tratamento homeopatia
18/11/05 - Cultura secreção seio maxilar: Negativo
06/12/05 - Tratamento com Nasonex Spray (mometasona furoato) – 10 dias
Mantendo, em paralelo, a homeopatia com dosagens próprias para a convivência
04/01/06 - Cultura secreção seio maxilar: Negativo
12/01/06 - Cirurgia 21
Catarata de origem medicamentosa - olho esquerdo
Internação Hospitalar Para Antibioticoterapia
(Referenciado em Desconstruindo a Natureza III - Cirurgia Dezoito / Em Paralelo: Bactérias no Osso e Mais Antibiótico)
Quanto ao Processo de Administração de Medicamento:
-
Ocorreu em algumas situações, quando da administração do antibiótico, que as técnicas de enfermagem deixassem a tampa do equipo em cima da colcha que recobria a cama. Aquela tampa seria recolocada no equipo após a administração, não fosse a minha intervenção em sentido contrário.
Não certamente, mas com uma probabilidade maior que zero, aquele procedimento poderia contaminar a tampa. Para um paciente que estava ali justamente para se ver livre de bactérias, com histórico de infecção hospitalar em internação anterior, maior que zero já é muito. Aquelas profissionais não tiveram essa percepção.
Esse problema remete a duas recomendações: Os requisitos de capacitação da força de trabalho - a que me reportarei mais adiante; A rotina de procedimentos, que deve obrigatoriamente prover o suporte para a tampa - procedimento que inclusive foi adotado por outras profissionais. -
Fez-se também necessário a minha intervenção no sentido evitar a administração dos medicamentos dipirona e plasil, que haviam sido suspensos. Perguntando a respeito da ficha de prescrição fui informado que a suspensão havia sido registrada no verso da ficha, uma vez que havia se esgotado todo o espaço do anverso. Esse procedimento, que seria usual para médicos “externos”, dificultaria a leitura na medida em que o esperado é que seja aberta uma nova ficha.
Também por dificuldades quanto a ficha de prescrição, não foi fácil que eu conseguisse a administração de um medicamento prescrito como SOS pela médica clínica.
Em todas as situações, os mesmos inconvenientes: A necessidade do esforço do paciente; as desconfianças nele geradas; o desperdício de tempo da força de trabalho envolvida.
Ocorre-me com relação ao problema a recomendação do investimento em um sistema de informações que contemple inclusive o registro e a consulta à prescrição de medicamentos. Esse sistema de informações deve atender a todos os requisitos de operacionalidade dos processos de produção dos serviços, no sentido de incentivar o seu uso, eliminando os problemas de padronização, agilidade e segurança - o sistema de informações servindo ao processo.
Pelas informações que me foram colocadas, o módulo do sistema que trata a ficha de prescrição na unidade semi-intensiva ainda não atende a esses requisitos de operacionalidade. -
Atendendo a solicitação de uma técnica de enfermagem passei a urinar em um depósito para permitir o controle da retenção de líquido. Essa urina permaneceu no depósito até que começou a exalar um cheiro desagradável. Como a equipe da limpeza não está autorizada a limpar o depósito, acabei realizando esta tarefa.
Fui informado pela próxima técnica de enfermagem a me atender, quanto a sua prática a respeito: somente efetua a medição da urina caso o paciente relate dificuldades a respeito ou aparente retenção.
A propósito, ocorre-me recomendar que seja adotado um procedimento padrão a respeito, evitando a adoção de critérios diversos. -
Não tendo evacuado até por volta das 12 horas do segundo dia da internação, e considerando a regularidade do meu intestino e a ocorrência de um fecaloma em uma cirurgia anterior, solicitei um laxante.
Não obstante diversas cobranças que fiz a respeito, o Tamarine prescrito somente me foi trazido por volta das 11 horas do terceiro dia da internação. Cerca de meia hora antes o Tamarine havia se tornado desnecessário, e por sorte sem maiores danos, não obstante as fezes bastante ressecadas.
Fui informado que o problema se deu por conta da demora na disponibilidade do Tamarine, não transparecendo no entanto nenhuma justificativa, até porque ele seria de uso regular.
Ainda a propósito de disponibilidade, me ocorre comentar um problema em uma cirurgia que fiz neste ........... em 13/06/03.
Após acordar da anestesia e ir ao banheiro, a veia onde estava sendo administrado soro estava doendo. Observei que minha veia havia sido puncionada com uma “agulha” diferente e que esta não estava bem fixada, oscilando com o movimento do meu braço. Assim permaneceu até a minha alta, dado que a minha internação foi de curta duração. Logo a seguir viria a se desenvolver naquela veia uma enorme flebite, me obrigando inclusive a ser atendido pela emergência do hospital. Posteriormente o quadro veio a se complicar com o desenvolvimento de uma enorme bolha, existindo até hoje uma cicatriz remanescente.
A “agulha” diferente a que me referi anteriormente tratava-se na verdade de um Scalp, identificado pela “borboleta” vermelha na sua parte superior e pela rigidez da agulha que é introduzida na veia. A utilização do Scalp e a forma que foi feita acabaram por acarretar a flebite.
A recomendação que me ocorre a respeito é que Scalp não seja disponibilizado senão para uso restrito, como por exemplo a colheita de sangue para exame - conforme já pude observar em um outro hospital.
Em todos os demais casos somente o Jelco deve ser disponibilizado.
Quanto ao Processo de Entrega de Exames:
No sexto dia da internação solicitei ao setor responsável a entrega dos resultados dos exames que haviam sido realizados. Fui informado que a entrega somente se daria após a alta, quando eu deveria voltar àquele setor.
Acabei recebendo os resultados, contando para tanto com a boa vontade da médica responsável. Ela concordou com os meus argumentos da impropriedade da rotina para um caso como o meu - um paciente internado durante um período maior que o necessário para a entrega dos resultados, tendo que despender um tempo adicional após a alta para receber os resultados.
Observei que teria alta na segunda-feita pela manhã cedo, e reteria ainda mais a pessoa que viria me buscar, atrasando ainda mais os seus compromissos de trabalho - no caso, desnecessariamente.
Quanto a Capacitação da Força de Trabalho dos Serviços de Enfermagem:
Ocorreu-me a impressão que estes profissionais não estão devidamente conscientes da sua significativa importância para a fixação da imagem do hospital junto aos seus pacientes.
Não obstante a constatação da predominância de ótimos predicados - simpatia; boa vontade; conhecimentos de técnicas e instrumentos -, ocorreram diversas situações que explicitaram requisitos de capacitação da força de trabalho a serem reforçados.
Além das situações levantadas no relatado anteriormente quanto ao Processo de Administração de Medicamento, me ocorre ainda destacar:
- A técnica de enfermagem que após abrir a gaveta do armário, quando do seu primeiro contato, me perguntou se eu estava usando fraldão - havia alguns desses na gaveta. A pergunta demonstrou não existir qualquer conhecimento prévio a respeito do paciente
- Pode ter sido coincidência, mas pude observar um menor envolvimento com os trabalhos que estavam sendo realizados quando de profissionais que pertenciam a outra ala e estavam cobrindo folga ou falta na ala em que eu estava internado. Ocorreu-me então a dúvida quanto ao foco do atendimento daqueles profissionais.
- Numa oportunidade em que se fez necessário puncionar a minha veia, apresentou-se uma enfermeira até então desconhecida que somente citou a tarefa que seria realizada. Ela não se apresentou, nada me perguntou e não pareceu dar atenção ao relato que lhe fiz a respeito do meu quadro. Logo após iniciada a punção, ocorreu um problema com sangramento excessivo. A enfermeira então se pronunciou com simpatia, situando que a causa estaria no equipo, que foi substituído. Logo aquela tomada de veia viria a dar sintomas de problemas, não resistindo à segunda administração de antibiótico. Teve que ser feita nova punção. Os pecados cometidos por aquela enfermeira no contato inicial mais me soaram como uma manifestação da sua insegurança para a realização da punção. Posteriormente, no entanto, pude observar qualidades daquela profissional quanto a gerência das técnicas de enfermagem do plantão.
Em um puncionamento anterior da minha veia, uma outra enfermeira tinha tido um comportamento distinto. Tinha atendido a todos os requisitos de um primeiro contato e, não se sentindo segura para a realização da tarefa chamou um colega que procedeu a punção. Não percebi no episódio uma falha, mas sim um predicado.
Em contraposição, tive mais tarde a oportunidade de observar que faltavam àquela mesma enfermeira um melhor preparo para o gerenciamento das técnicas de enfermagem do seu turno - o horário da administração do antibiótico chegou inclusive a atrasar duas horas.
Ocorreu-me então a possibilidade que o treinamento das enfermeiras possa estar merecendo uma maior atenção para o caráter individual e direcionado do aprendizado, segundo o recomendado pelas ciências cognitivas - o que melhor atenderia ao perfil distinto daquelas duas profissionais citadas.